São Paulo, sábado, 12 de fevereiro de 2005

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ROMANCE/"MICHAEL E PAULINE: UM CASAMENTO AMADOR"

Anne Tyler lida com sutilezas da vida

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Há uma velha discussão nas letras anglo-americanas, sobre se a melhor literatura é feita por autores que valorizam o enredo ou por aqueles que priorizam os elementos poéticos, o apuro da forma em vez do deslumbramento do conteúdo.
Para alguns, a discussão nem existe. O fato de um autor centrar-se excessivamente no enredo, e pior, centrar-se nele para arrancar ao leitor emoções "fáceis" de horror e compaixão, já basta para lançá-lo ao limbo dos escritores de apelo popular. Talvez por isso um romancista como John Steinbeck nunca tenha sido verdadeiramente apreciado pela "alta" crítica, sobretudo quando comparado a, digamos, William Faulkner.
Anne Tyler é autora muito mais do time de Steinbeck do que de Faulkner, como comprova seu último romance, "Michael e Pauline: Um Casamento Amador". Matrimônio, brigas e separações, sonhos que se esfumaçam, mágoas, o desconhecimento sobre o ser amado: a autora não teme lidar com o demasiado humano.
No centro está a história banal de Michael e Pauline. Conhecem-se quando os EUA entram na Segunda Guerra. Casam-se após a volta de Michael da batalha. Vivem juntos três décadas, têm três filhos, netos. Um dia separam, inesperadamente, suas existências nunca realmente unidas.
Apesar das décadas de casamento, Michael nunca compreendeu Pauline. E vice-versa. A constante variação dos pontos de vista serve para ampliar a percepção da incerteza: quando acompanhamos a perspectiva de Michael, Pauline nos parece voluntariosa, enigmática; quando são os passos de Pauline que seguimos, Michael surge como homem frio, egoísta... e misterioso.
Tyler é mestre na delicadeza. Em certo momento, o motivo da traição se delineia. Pauline está aborrecida com o cotidiano de dona-de-casa e interessa-se por um amigo. Um dia, passa na casa dele para ajudá-lo em tarefas domésticas. A Michael, diz ter visitado a mãe. O jantar do casal é carregado de silêncios e não-ditos.
Pauline está a sós na sala quando o telefone toca. É sua mãe. Michael não lhe dera o recado? Ela ligara à tarde para dizer que a irmã dera à luz. Pauline atina com a situação. Michael soubera que ela lhe mentira, mas não a confrontara. A muda acusação sufoca o adultério ainda no berço. Mas é como se tudo houvesse ocorrido.
Tyler usa a mesma sutileza no terreno sub-reptício de seu romance, o da passagem do tempo. Os anos provocam alterações em Michael e Pauline. No entanto, ambos permanecem coesos em seu mistério. O "amador" do título remete a essa condição.
Apesar da experiência que adquirem com a idade, continuam amadores, neófitos nas matérias da vida. A vida começa, a vida termina, e entre esses dois marcos iniludíveis, transcorre a profunda ignorância do ser humano, sua vasta inadequação, que nada nem ninguém consegue alterar. Tyler lida com isso. E se se trata ou não de uma autora popular, essa é uma questão para outros críticos.


Michael e Pauline: Um Casamento Amador
   
Autora: Anne Tyler
Tradução: Sergio Viotti
Editora: Arx
Quanto: R$ 45, em média (392 págs.)


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