|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONCERTO/CRÍTICA
Osesp faz milagres com Bach
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
"Bach é um milagre de Deus!", escreveu o compositor Rossini em 1860. Pode ser. Que Deus é um milagre de Bach (1685-1750) ninguém duvida, depois de escutar a "Missa em Si Menor". E a Osesp também fez seus milagres, interpretando a "Missa", sexta passada, na Sala São Paulo.
A "Missa" nunca foi uma missa. Reunindo movimentos escritos em circunstâncias diversas, de 1723 a 1748, ela é uma espécie de
testamento musical e religioso de Bach. Foi composta sem nenhuma ocasião particular em mente e representa, no gênero litúrgico, o mesmo que a "Arte da Fuga" ou o "Cravo em Temperado", no secular: é a música pela música, sem apelo a nada nem ninguém, e por isso fazendo falar tudo e Deus.
Para acomodar o equilíbrio de forças barroco entre orquestra e
vozes, o maestro Neschling transformou a Osesp numa Ocesp: um
conjunto de câmara, boa parte do tempo reduzido a seis primeiros violinos, seis segundos, dois violoncelos, dois contrabaixos, mais sopros individuais e um órgão-contínuo. Mas não teve pretensão de interpretar Bach como os especialistas em música antiga. Nem poderia ter: a orquestra é uma sinfônica. Pontos para ela, que, se não faz um barroco barroco, também não toca Ludwig van Bach.
Mas essa música é novidade para eles e nem tudo ainda está completamente nos ossos. Há certas
diferenças, por exemplo, entre o
Bach dos solistas (com destaque
para o flautista Rogério Wolf e o
trompista Luiz Garcia), o das cordas e o do coro. Que não se entenda mal: são diferenças de estilo,
não de qualidade. Bach com sinfônica é tão legítimo quanto Bach no piano e a Osesp acerta, mais
uma vez, ao expandir o repertório
e bancar riscos. Equilíbrio vem.
Momentos maravilhosos: a entrada do "Qui Tollis", o coro espantosamente à distância, profetizando o "Et Incarnatus". (Contraparte do "et in terra pax hominibus", que Neschling regeu como uma cena de sonho, como as
óperas barrocas.) O "Sanctus" inteiro, onde a orquestra se lançou
livre de autoconsciência, saltando
junto com o coro pelas oitavas gigantescas. O tempo fora do tempo
no "Crucifixus", vozes saindo de
vozes para sempre, até a alquimia
do acorde de sexta aumentada,
que põe fim ao suplício e abre o
caminho para a "ressurreição".
Solistas cantores: um tanto sem
brilho, para quem esperava muito. Nomes respeitados do circuito
internacional, cantaram como
nomes, sem desmerecer de si,
mas sem acender fogos, divinos
que fossem.
No final, o "Dona Nobis Pacem"
encheu a alma de música, com os
trompetes na glória plena de
Bach. É a mesma música do "Gratias Agimus Tibi". Quer dizer: vai-se a Deus como se vem, num vai-vém de milagres em ré maior.
A "Missa" de Bach não foi escrita para nenhuma ocasião; mas o
concerto da Osesp foi uma homenagem ao maestro gaúcho José
Pedro Boéssio e ao flautista da orquestra Luiz Fernando Sieciechowicz, mortos em acidentes de carro. A cadeira do flautista ficou vazia, no meio dos naipes. Um antimilagre: maestro e flautista viraram música, aos nossos olhos.
Não tem nada a ver com milagres:
é a memória desses músicos, que
se inscreveu, para sempre, na música de Bach.
Avaliação:
Texto Anterior: Fashionista Próximo Texto: Música: "Autômatos" do Daft Punk fabricam segundo CD Índice
|