São Paulo, segunda-feira, 12 de março de 2001

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CONCERTO/CRÍTICA

Osesp faz milagres com Bach

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Bach é um milagre de Deus!", escreveu o compositor Rossini em 1860. Pode ser. Que Deus é um milagre de Bach (1685-1750) ninguém duvida, depois de escutar a "Missa em Si Menor". E a Osesp também fez seus milagres, interpretando a "Missa", sexta passada, na Sala São Paulo.
A "Missa" nunca foi uma missa. Reunindo movimentos escritos em circunstâncias diversas, de 1723 a 1748, ela é uma espécie de testamento musical e religioso de Bach. Foi composta sem nenhuma ocasião particular em mente e representa, no gênero litúrgico, o mesmo que a "Arte da Fuga" ou o "Cravo em Temperado", no secular: é a música pela música, sem apelo a nada nem ninguém, e por isso fazendo falar tudo e Deus.
Para acomodar o equilíbrio de forças barroco entre orquestra e vozes, o maestro Neschling transformou a Osesp numa Ocesp: um conjunto de câmara, boa parte do tempo reduzido a seis primeiros violinos, seis segundos, dois violoncelos, dois contrabaixos, mais sopros individuais e um órgão-contínuo. Mas não teve pretensão de interpretar Bach como os especialistas em música antiga. Nem poderia ter: a orquestra é uma sinfônica. Pontos para ela, que, se não faz um barroco barroco, também não toca Ludwig van Bach.
Mas essa música é novidade para eles e nem tudo ainda está completamente nos ossos. Há certas diferenças, por exemplo, entre o Bach dos solistas (com destaque para o flautista Rogério Wolf e o trompista Luiz Garcia), o das cordas e o do coro. Que não se entenda mal: são diferenças de estilo, não de qualidade. Bach com sinfônica é tão legítimo quanto Bach no piano e a Osesp acerta, mais uma vez, ao expandir o repertório e bancar riscos. Equilíbrio vem.
Momentos maravilhosos: a entrada do "Qui Tollis", o coro espantosamente à distância, profetizando o "Et Incarnatus". (Contraparte do "et in terra pax hominibus", que Neschling regeu como uma cena de sonho, como as óperas barrocas.) O "Sanctus" inteiro, onde a orquestra se lançou livre de autoconsciência, saltando junto com o coro pelas oitavas gigantescas. O tempo fora do tempo no "Crucifixus", vozes saindo de vozes para sempre, até a alquimia do acorde de sexta aumentada, que põe fim ao suplício e abre o caminho para a "ressurreição".
Solistas cantores: um tanto sem brilho, para quem esperava muito. Nomes respeitados do circuito internacional, cantaram como nomes, sem desmerecer de si, mas sem acender fogos, divinos que fossem.
No final, o "Dona Nobis Pacem" encheu a alma de música, com os trompetes na glória plena de Bach. É a mesma música do "Gratias Agimus Tibi". Quer dizer: vai-se a Deus como se vem, num vai-vém de milagres em ré maior.
A "Missa" de Bach não foi escrita para nenhuma ocasião; mas o concerto da Osesp foi uma homenagem ao maestro gaúcho José Pedro Boéssio e ao flautista da orquestra Luiz Fernando Sieciechowicz, mortos em acidentes de carro. A cadeira do flautista ficou vazia, no meio dos naipes. Um antimilagre: maestro e flautista viraram música, aos nossos olhos. Não tem nada a ver com milagres: é a memória desses músicos, que se inscreveu, para sempre, na música de Bach.


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