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LIVROS
ROMANCE
"O Menino que se Trancou na Geladeira" adota linguagem ensaística
Fábula de Fernando Bonassi ri de uma nação em frangalhos
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Ele é filho de um porteiro de
anexo de uma TV estatal, que
foi preso e ficou sem falar durante
cinco anos, e de uma atriz de
quinta especializada em papéis
sacros, mas que também fez bico
como "prostituta espiritualista".
Os pais morreram num entrevero
mal explicado. O menino, portanto, é órfão.
Ao ver sua namorada corcunda
que lava louça para fora (filha de
uma ex-costureira de teatro de
vanguarda) ser seduzida por um
japonês trambiqueiro, o menino,
desconsolado, foge para o deserto, primeiro dentro de um barril
de petróleo, depois, numa geladeira de última geração.
Esse é um possível esboço do
enredo desta nova ficção do escritor, roteirista e dramaturgo Fernando Bonassi, colunista da Folha. Dizer enredo é um pouco
complicado, pois a ação transcorre num estado acelerado e instável, e o próprio autor, dentro do
livro, em seus comentários metalingüísticos, define a obra como
"romance-reportagem".
O romance arremeda, pela via
satírica, o gênero ensaístico. Mediante a figura do menino que se
tranca na geladeira, retrata uma
nação em frangalhos, muito colada à brasileira. Trata-se de uma
sociedade burocratizada, estatizada, midiática, injusta e corrupta,
onde sobejam as negociatas, os
"reality shows" e o fosso social.
Como anota o autor num parêntese, "sociedadch", em "guarany-puruníi", quer dizer "mal-estar".
Além disso, encontra-se estagnado. O romance, embora aponte
uma trajetória (o menino nasce,
encontra o amor, perde-o, foge
para o deserto), insere-a dentro
de um tempo imutável, um presente eterno onde destroços de
um passado recente convivem
com as novas modas já cristalizadas em sua boçalidade. Afinal, o
próprio uso do termo "menino",
mesmo depois de ele já ter crescido, sugere essa paralisia.
E que melhor signo para a manutenção desse estado de paralisia do que a geladeira, que deve
conservar os itens ali inseridos,
assim como o menino deseja preservar-se "dos conflitos exteriores"? A função da geladeira é de
protegê-lo e de preservá-lo, e não
propriamente de isolá-lo. Ele, afinal, é capaz de locomover-se,
usando-a como veículo.
O autor compara-o a um super-herói, com seu "equipamento
muito específico", e de fato sua
gênese lembra a de personagens
histórico-lendários, como Buda,
que viveu seis anos em contemplação, ou santo Antão, que fugiu
ao deserto, renegando a miséria
da contingência humana.
Mas, ao contrário do santo, açodado pelas tentações mundanas
na forma de sonhos, o menino
trouxe o mundo consigo ao refrigério e continuou travando contato com ele de dentro de seu
equipamento protetor. Não busca
ascese nem iluminação. É um anti-herói que visa apenas a si próprio, um macunaíma engessado
em ferro, plástico e acrílico.
Sátira feroz à fase atual da cena
capitalista (se pegarmos aí um naco de tempo de 20 ou 30 anos), "O
Menino..." tem uma alucinante
estrutura narrativa e de frase. Os
fatos, conceitos e sentenças são
emendados uns nos outros, muitas vezes com alterações fonêmico-semânticas (saberes "zen-nudistas", os "Estados Suínos" etc),
resultando numa mixórdia lingüística e em unidades de idéia
muitas vezes difíceis de acompanhar, mas que refletem muito
bem o estado caótico da nossa
atual civilização.
Desse mundo cão em que o deserto não funciona mais como espaço de renovação, mas de mero
regurgitamento dos males de
uma sociedade inchada de contradições, só o amor pode -ou
não- oferecer uma possibilidade
de escape. Só lendo esta feérica fábula pós-apocalíptica de Bonassi
para descobrir.
O Menino que se Trancou na Geladeira
Autor: Fernando Bonassi
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 42,90 (224 págs.)
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