São Paulo, Sexta-feira, 12 de Março de 1999
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CRÍTICA
Ator é simplesmente impressionante

GERALD THOMAS
especial para a Folha, de Nova York

Com o corpo flexionado e os olhos fechados, o dedo indicador sobre a testa e os dedos da outra mão voando pelo ar, como se quisessem capturar algum espírito, Pedro Cardoso é, simplesmente, impressionante.
Em pé no centro do seu palco azul, ele faz verdadeiras peripécias com a língua brasileira e "surta" em cena aberta, invocando todos os santos e orixás, todas as crenças e superstições e todos os clichês que definem o brasileiro inocente-inútil, patife, canalha, pobre-coitado, violento, medroso, romanticamente otimista e bestial.
Solando, rimando, xingando ou rezando, ele lembra um dos personagens perdidos das histórias de Paul Auster, que atravessam suas vidas sendo vítimas de trapaças do destino e do acaso e que chegam ao final exaustos de tanta articulação mental de seu autor. Imperdível e brilhante de dar inveja, Pedro Cardoso nos arrasta, às gargalhadas, pelo território trágico de "Os Ignorantes" e nos expõe a uma jornada alucinante e improvável de destinos que se cruzam e se agridem, se degradam, se aconchegam na miséria e nos fazem morrer de rir.
Pedro Cardoso é um autor trágico que se apresenta na forma de um comediante inocente. É inútil, e até injusto, tentar descrever sua arte por meio da tradição do "stand up comic" norte-americano. Mas vendo-o em cena, arquitetando situações absurdas entre seus personagens hiper-realistas, eu não conseguia parar de pensar no humor diabólico de Lenny Bruce, o ícone do humor social, herói cult da contracultura e mestre em deixar o público num abismo entre a gargalhada desesperada e a culpa, ao se dar conta de que riam de tragédias horríveis.
Em "Os Ignorantes", rimos da imbecilidade e da mesquinhez dos personagens, que reconhecemos instantaneamente. Rimos do comportamento deles e de seus destinos fracassados e rimos da nossa própria culpa diante de suas (parcas) existências. Mas Pedro Cardoso é muito mais que um comediante fazendo sua "routine". Ele é um repentista que encontra seus personagens lúdicos dentro do abismo social brasileiro e que vai em busca de alguma lógica que explique tanto desperdício humano.
Como se estivesse sendo guiado por um espírito qualquer, esse autor-ator "recebe" seus santos e anti-santos em cena aberta e, sem a menor piedade, os coloca a nossa disposição. Isto é, à disposição da nossa própria ignorância.


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