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MEMÓRIA
Lélia Abramo nunca se curvou
SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Era 4 de junho de 1944: os aliados entram pela via Appia para libertar Roma. À frente, em pé em
seus tanques, os americanos jogam chocolates para a população
faminta. Ali presente, Lélia Abramo. Aos 33 anos, ainda sonhando
em ser atriz, enfrentando a fome e
a doença, mas mantendo a firmeza de suas convicções trotskistas,
ela não se abaixa para pegar o que
via como caridade imperialista.
"Lélia Abramo nunca vergou a
espinha." É o que testemunha Antonio Candido no prefácio de "Vida e Arte", sua autobiografia. Não
podia tirar isso da cabeça ao vê-la
falar aos calouros da faculdade de
teatro onde dou aula. Sentia que
era a própria história falando.
E não só a história do teatro. O
grande valor de Lélia era o de
sempre subordinar seus momentos de glória pessoal, e foram muitos, à responsabilidade pelo momento social que estava vivendo.
Assim, não assombra ninguém
que em 1958, com "Eles Não
Usam Black Tie", um imprevisto
marco do teatro nacional, a iniciante de 47 anos tenha conseguido impor a personagem de Romana sem se intimidar por contracenar com o grande mestre do
teatro brasileiro, Eugênio Kusnet.
Muitas personagens assim
constam em sua carreira, assim
como prêmios por elas: a "Mãe
Coragem" de Brecht (1960), Clitemnestra do "Agamenon" de Ésquilo (1968), a "Mãe" de Gorki
(1985). Foi atriz fundamental em
montagens históricas de Antunes
Filho, entre elas "Yerma" (1962),
"Vereda da Salvação" (1964) e
"Esperando Godot" (1976). Mas
pode se procurar em vão em "Vida e Arte" elogios a si mesma.
Pelo contrário, sente-se sempre
o seu pulso acelerar quando narra
as lutas que presenciou. Brian Penido, que contracenou com ela
em uma leitura de poesias surrealistas promovida pelo Grupo Tapa em 1988, lembra sua disposição constante para discutir política, com um entusiasmo que contradiz a imagem de reservada.
É que sua enorme auto-exigência estava voltada para o seu ofício
de atingir a platéia, nunca para a
autopromoção. Ao sair da aula
inaugural, após contagiar os adolescentes com sua juventude, voltou para mim seus olhos inquietos, com uma desarmante humildade: "Será que eles gostaram?".
Fique tranqüila, Lélia: seu
exemplo está dado. Segundo a
implacável fórmula de Ésquilo, se
apenas no último momento de vida é que se pode saber se alguém
foi feliz ou não, entendendo a felicidade como o conhecimento e a
prática plenos de seu destino,
apesar das diversidades que enfrentou na vida, nunca houve alguém mais feliz do que você.
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