São Paulo, Segunda-feira, 12 de Abril de 1999
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FERNANDO GABEIRA

O que fazer quando encontramos um pit bull?

Comecei a semana pensando em escrever algo sobre pit bull. Viajei para Curitiba e entrei num seminário em que se discutia a compaixão. Tinha tudo para esquecer o pit bull.
Dalai-lama contou a história de um monge budista que passou 20 anos na prisão, sofrendo barbaridades. Ao sair, confessou que sentiu o perigo apenas algumas vezes. Perguntaram se era perigo de vida. Ele disse: "Não, era o perigo de perder a compaixão pelos chineses".
Mas para que não se tivesse uma visão muito romântica da compaixão, o líder tibetano acrescentou:
- Se um cachorro bravo vier atacá-los, fujam. De nada vai adiantar dizer compaixão, compaixão...
De novo, me veio à cabeça o pit bull. Vivemos uma temporada de episódios envolvendo cães bravios. O pit bull tornou-se um símbolo. No Rio há até os pit boys que infernizam as festas com sua pancadaria. A torcida do Flamengo grita quando Romário faz um gol: "Ul, ul, ul, Romário é um pit bull".
Minha dificuldade em opinar sobre o pit bull está na hesitação entre as duas teses. Uma diz que a raça foi preparada geneticamente para matar. Outra diz que tudo depende do dono e há pit bull que brinca com as crianças com a placidez de um são bernardo.
Já participei de centenas de debates desse tipo: geneticamente ou socialmente determinado? No entanto, no caso do pit bull não tenho elementos para afirmar uma ou outra. Teria de aprender sobre pit bull e isso demanda estudo e convivência.
Acho que os defensores da tese de que o dono é o que importa merecem um pequeno crédito de confiança, porque apresentam provas concretas, exemplos de pit bull manso, puxando carrinho de bebê.
Se é assim, o que fazer com os donos? O próprio seminário ao qual eu assistia acabou me dando uma idéia. Os budistas acham que a raiva faz mal à saúde. Todos nós sabemos disso intuitivamente. Logo, seria preciso cuidar da raiva que ataca os donos de pit bull.
Não dá para defender isso apenas com argumentos do saber cotidiano ou da experiência não-científica das religiões. Por sorte, no avião distribuíram uma revista "Time" anunciando que cientistas americanos estão desenvolvendo a terapia do perdão. Pessoas que foram atingidas por outras vivem melhor quando, depois de anos de ressentimento, perdoam seus agressores.
Já que agora é quase científica a suposição de que raiva e ressentimento fazem mal à saúde, talvez valesse a pena aplicar a terapia do perdão aos donos de pit bull que educarem seus cães.
Como distinguir o dono que educa para a paz e o que educa para a guerra? A melhor idéia que conheço é a de Tuga Angerami, deputado paulista que propôs um exame psicológico de seis em seis meses. Na verdade, ele lançou essa idéia num projeto sobre professores de lutas marciais. A licença seria revalidada a cada exame. O mesmo poderia ser feito com os donos de pit bull.
Alguns deputados me sondaram sobre o projeto de castrar e esterilizar os pit bulls. Não consegui me identificar com a idéia. Castração e esterilização são muito radicais. E se estivermos enganados na hipótese de que sua agressividade é genética? Teríamos exterminado uma raça e, para aliviar nossa culpa, buscaríamos reproduzi-la em laboratório. Os pit bulls de proveta ainda assim seriam uma lembrança constrangedora dos outros que se tornaram violentos porque foram educados para isso.
Acho que temos um acúmulo de experiência para transformar o extermínio em último recurso. Num momento em que tantas espécies desaparecem, por que acabar com mais uma, sem tentar a hipótese que valoriza a preservação dos pit bulls?
O argumento que alguns interlocutores levantaram de que alguns países europeus optaram pelo extermínio valoriza demais uma idéia da Europa. Os trágicos momentos que estamos vivendo, momentos de limpeza étnica e estúpidos bombardeios, não nos autorizam a tomar nenhum desses países como um modelo perfeito.


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