São Paulo, Segunda-feira, 12 de Abril de 1999
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CINEMA

Dias retrata religiosidade popular do Brasil em "Fé"

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

O longa-metragem "Fé", que abre hoje em São Paulo o 4º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, é um painel multifacetado da religiosidade popular no Brasil de hoje.
Do candomblé ao catolicismo, do espiritismo às seitas evangélicas, do culto do padre Cícero em Juazeiro do Norte (CE) ao misticismo do Vale do Amanhecer (DF), todas as formas de fé da população brasileira pulsam e vibram nesse documentário singular.
Seu diretor, Ricardo Dias, 49, levou um ano e quatro meses colhendo imagens e sons de rituais, cerimônias, festas e romarias pelo país afora. Ao final de seu próprio périplo, o cineasta tinha em mãos 60 horas de material filmado e 120 horas de áudio gravadas.
Com a ajuda do experiente montador (e também cineasta) Eduardo Escorel, condensou esse material num filme de 90 minutos.
"Pela primeira vez na vida, tive um orçamento adequado ao tamanho da minha proposta, e não precisei economizar negativo", diz o diretor, que gastou cerca de US$ 400 mil em seu documentário.
A produção do filme percorreu o Distrito Federal e cinco Estados brasileiros: Pará, Ceará, Bahia, Minas Gerais e São Paulo. Mas o longo tempo consumido nas filmagens (de outubro de 96 a janeiro de 98) não se deveu apenas aos grandes deslocamentos geográficos.
Semanas antes de filmar cada templo, terreiro ou igreja, Dias e sua pequena equipe instalavam-se no local, conversavam com os responsáveis e participantes dos rituais, até tornarem-se "invisíveis" e poderem realizar seu trabalho com um mínimo de intervenção sobre a realidade retratada.
"Costumo dizer que, para fazer documentário, você precisa ter paciência, tempo, boa educação e, se possível, um pouco de talento", define o cineasta.
As imagens foram captadas com uma câmera super-16 milímetros -o que permitiu maior mobilidade e contribuiu para a "invisibilidade" das filmagens- e posteriormente ampliadas para 35 mm.
A Igreja Universal, do bispo Edir Macedo, não permitiu a filmagem de seus cultos. "As outras não ofereceram maiores resistências", diz Ricardo Dias.

Formação católica
Os protagonistas de "Fé" são pais-de-santo, padres, pastores e médiuns, mas também -e principalmente- praticantes anônimos das várias religiões. Um dos personagens que falam no filme, o bispo de Uberaba (MG), é padrinho de crisma de Ricardo Dias.
"Tive uma formação católica muito forte, e mesmo na universidade, na época do engajamento nas posições de esquerda, eu nunca concordei com a idéia de que a religião é o ópio do povo", afirma o diretor, que hoje não professa nenhuma religião.
Questionado sobre os grandes temas religiosos -a existência da alma, a vida depois da morte, a justiça divina etc.-, Dias diz preferir não pensar neles. "Como diz um personagem do filme, o mago Raul de Xangô, a morte não é nada: não viver é que é medonho."

Sem narração
Quando estava montando o material colhido, Dias procurou a escritora mineira Adélia Prado para lhe pedir conselhos sobre a narração mais adequada ao filme.
"Mandei-lhe uma fita, e ela respondeu dizendo que achava melhor deixar o documentário sem narração (o que acabou acontecendo). E declarou: "Seu filme consegue mostrar o que significa a adoração"."
Dias diz que teve a idéia de realizar o documentário quando estava filmando seu longa anterior, "No Rio das Amazonas", e conheceu a religiosidade das populações do Baixo Amazonas.
"Minha idéia do filme é a de entrar numa igreja de periferia, de paredes de reboco, e descobrir um mundo lá dentro. E acontece o mesmo com as pessoas: cada uma é um mundo", diz o diretor.
Ele cita como exemplos alguns dos personagens que descobriu rodando "Fé", como o homem que, abandonado pela mulher, passa a consertar imagens quebradas de santos, ou a moça que ensina hinos religiosos ao papagaio que uma parente lhe confiou.
Em paz com seus santos, Ricardo Dias já tem dois novos projetos em mente: um documentário sobre Brasília e um longa de ficção sobre Raul Seixas, que já tem até título: "Maluco Beleza".


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