São Paulo, quarta-feira, 12 de maio de 2010

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Crítica/"Cidadão Cannes"

Autobiografia de Gilles Jacob revela paixões e ódios que movem festival

LEON CAKOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em francês o trocadilho é inequívoco. Cannes e Kane são ditos do mesmo jeito -"kánn". E "Cidadão Cannes", livro, insere-se na galeria dos prodígios literários capazes de arrancar reações dos leitores. Afinal, há muito somos atingidos pelas ondas lançadas pelo balneário mediterrâneo e seu Festival de Cannes.
Gilles Jacob, o diretor desde 1976, revela agora os bastidores desta megaoperação que provoca amor e ódio, paixão e indiferença em cinéfilos e turistas de todo o mundo.
A mais-valia tem em Cannes o seu mais perfeito microcosmo. Todos podem ter seu lugar ao sol no festival, mas os preços abusivos são capazes de indignar até os mais poderosos executivos de Hollywood. A humilhação, quase como um exercício institucional em Cannes, é reservada desde a um jornalista principiante que não tem acesso aos filmes até às maiores estrelas do cinema francês, como Alain Delon, esquecido no aeroporto de Nice.
Veremos ainda como os círculos do poder afetam os encantos do cinema. O exercício de memória é um estímulo literário. A mistura de lembranças sem cronologia inclui, além dos melhores e mais nervosos momentos do festival, intimidades da vida familiar, o casamento infeliz dos pais, os perigos na pele de ser judeu na França invadida pelos nazistas, quando o fazem passar por criança católica no remoto noviciado de Santo Rosário, em Voiron.
"Nunca deixarei que digam na minha frente que a igreja não ajudou os judeus durante a guerra" é uma de suas comoventes afirmações. A sinceridade de Gilles Jacob revela jurados cruéis ou manipuláveis. Ao enfrentar "o público mais blasê do mundo" (o de Cannes, é claro), a vaidade e até a corrupção de políticos, o diretor do festival expõe em várias passagens a fragilidade de seu cargo. Uma delas, em 1991, quando é chamado ao gabinete do ministro da Cultura Jack Lang para ouvir ameaçadoramente que não havia estrelas suficientes na abertura para posar ao seu lado.
Para a sorte dos cinéfilos, Gilles Jacob não ganhou o cargo por barganha política e, sim, por méritos de sua bagagem como crítico apaixonado por cinema. Quando nos introduz à fogueira de vaidades e confidencia como todo esse universo se move, entendemos a sua opção de misturar emocionantes passagens da sua vida real. Nessa eletrizante mistura, nem ele escapa de ser julgado: "Todo diretor de festival é um cineasta reprimido...", sentencia. Palma de Ouro para Gilles Jacob.

LEON CAKOFF é diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.


CIDADÃO CANNES

Autor: Gilles Jacob
Tradução: Maria Lucia Machado
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 54 (392 págs.)
Lançamento: 14 de maio
Avaliação: ótimo




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