|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Show revela face intelectual do manipulador pop
do enviado ao Rio de Janeiro
Lulu Santos é um intelectual. Esta nova pegada de "Trio" mostra,
já em princípio, uma face de inquietação, de fissura pela manipulação de conceitos pop, que é rara
entre artistas populares do Brasil.
Começa pela maneira de cantar
o repertório de rocks "lado B". O
show se inicia com o clássico "O
Calhambeque", versão do gênio
Erasmo Carlos lançada por seu
amigo Roberto Carlos em 64.
Lulu canta o rockão displicentemente, simulando-se trôpego,
ébrio. Assim aparecerá em "De
Leve" (versão que Gilberto Gil e
Rita Lee fizeram em 77 para "Get
Back", dos Beatles, e que Lulu
cantara no início da carreira),
"De Repente" (85), "Ro-Que-
Se-Da-Ne" (86) e outras tantas.
Parece querer encarnar o tio bêbado que falta à MPB. Claro que é
um blefe intelectual, já que é notório que Lulu anda pendurado no
establishment baiano.
Tudo bem, tal establishment lhe
rende bons momentos, nas versões hiper-rock de "Ele Falava
Nisso Todo Dia" (68), de Gil, e
"Objeto Não Identificado" (69),
de Caetano. São forjadas, mas não
deixam de ser ousadas.
Aí há a questão rock/tecno, outra mirabolância intelectual de Lulu. Viu Lobão, Ira!, até Barão Vermelho catando tecno, numa trilha
que ele inaugurou no mainstream
brasileiro -nada mais macho que
resolver fazer rock'n'roll.
O problema é: aqui Lulu tem de
ceder e reaparecer conservador.
Seu trio é vigoroso, mas bem menos vivo que as incursões sorrateiramente dance, funk, tecno -traduzidas em álbuns de respeito como "Assim Caminha a Humanidade" (94) e "Liga Lá" (97).
Tudo grita demais, a barulheira
é infernal. Mas aí entra outro dado
intelectual: ainda que datado, trata-se de um ajuste de contas do
Lulu pós-tecno com seu grupo de
berço, o Vímana, algo como um
Ed Wood do rock progressivo.
Nessa o show se faz pré-progressivo, como tentando apagar da
história que o Vímana houvesse de
fato existido. Por isso ali estão versões proto-progressivas de
"Sunshine of Your Love" (Jack
Bruce-Pete Brown) e "Born Under a Bad Sign" (Booker T. Jones).
E por isso há "(Sitting On) The
Dock of the Bay", hino soul áspero de Otis Redding (um dos grandes cantores do século), standard
irretocável que Lulu, surpresa!, recria de modo admirável. Por isso,
até, existe versão rock-psicodélica
de "Tuareg", ovo de Colombo de
Jorge Ben que Gal lançou em 69,
quando o progressivo ainda estava
na barriga da bruxa.
Por fim, não é por isso que Lulu
diz, lá pelas tantas, que nunca
mais vai cantar "Minha Vida",
"se tiver um pingo de caráter".
Ora, todos sabem que o popstar
Lulu Santos não tem um pingo de
caráter -é questão de tempo esperar que se desdiga e cante "Minha Vida".
Falta de caráter pop significa o
seguinte: temeroso da própria
obra, Lulu se fez um camaleão
-um David Bowie à Oswaldo
Aranha. E foi no tornar-se isso que
conquistou seu lugar ao Sol, suficiente para permitir que migre,
sem grandes patrulhas, do "Ritmo do Momento" (era o nome de
seu disco de 83) ao rock em 98, todo fora do tempo/espaço.
Lulu Santos, tão bobinho nos 80,
é hoje artista de calibre. Inteligente, sabe como ninguém manipular
conceitos recolhidos por aí. Desde
que não pretenda se passar por tio
bêbado ou inventor do rock, vai
divertindo o povão enquanto não
dá de cara com a própria obra ainda não inventada. Tudo bem, a
maioria de seus pares nem reflete
sobre conceitos que surrupia.
(PAS)
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|