São Paulo, sexta, 12 de junho de 1998

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CRÍTICA
Show revela face intelectual do manipulador pop

do enviado ao Rio de Janeiro

Lulu Santos é um intelectual. Esta nova pegada de "Trio" mostra, já em princípio, uma face de inquietação, de fissura pela manipulação de conceitos pop, que é rara entre artistas populares do Brasil.
Começa pela maneira de cantar o repertório de rocks "lado B". O show se inicia com o clássico "O Calhambeque", versão do gênio Erasmo Carlos lançada por seu amigo Roberto Carlos em 64.
Lulu canta o rockão displicentemente, simulando-se trôpego, ébrio. Assim aparecerá em "De Leve" (versão que Gilberto Gil e Rita Lee fizeram em 77 para "Get Back", dos Beatles, e que Lulu cantara no início da carreira), "De Repente" (85), "Ro-Que- Se-Da-Ne" (86) e outras tantas.
Parece querer encarnar o tio bêbado que falta à MPB. Claro que é um blefe intelectual, já que é notório que Lulu anda pendurado no establishment baiano.
Tudo bem, tal establishment lhe rende bons momentos, nas versões hiper-rock de "Ele Falava Nisso Todo Dia" (68), de Gil, e "Objeto Não Identificado" (69), de Caetano. São forjadas, mas não deixam de ser ousadas.
Aí há a questão rock/tecno, outra mirabolância intelectual de Lulu. Viu Lobão, Ira!, até Barão Vermelho catando tecno, numa trilha que ele inaugurou no mainstream brasileiro -nada mais macho que resolver fazer rock'n'roll.
O problema é: aqui Lulu tem de ceder e reaparecer conservador. Seu trio é vigoroso, mas bem menos vivo que as incursões sorrateiramente dance, funk, tecno -traduzidas em álbuns de respeito como "Assim Caminha a Humanidade" (94) e "Liga Lá" (97).
Tudo grita demais, a barulheira é infernal. Mas aí entra outro dado intelectual: ainda que datado, trata-se de um ajuste de contas do Lulu pós-tecno com seu grupo de berço, o Vímana, algo como um Ed Wood do rock progressivo.
Nessa o show se faz pré-progressivo, como tentando apagar da história que o Vímana houvesse de fato existido. Por isso ali estão versões proto-progressivas de "Sunshine of Your Love" (Jack Bruce-Pete Brown) e "Born Under a Bad Sign" (Booker T. Jones).
E por isso há "(Sitting On) The Dock of the Bay", hino soul áspero de Otis Redding (um dos grandes cantores do século), standard irretocável que Lulu, surpresa!, recria de modo admirável. Por isso, até, existe versão rock-psicodélica de "Tuareg", ovo de Colombo de Jorge Ben que Gal lançou em 69, quando o progressivo ainda estava na barriga da bruxa.
Por fim, não é por isso que Lulu diz, lá pelas tantas, que nunca mais vai cantar "Minha Vida", "se tiver um pingo de caráter". Ora, todos sabem que o popstar Lulu Santos não tem um pingo de caráter -é questão de tempo esperar que se desdiga e cante "Minha Vida".
Falta de caráter pop significa o seguinte: temeroso da própria obra, Lulu se fez um camaleão -um David Bowie à Oswaldo Aranha. E foi no tornar-se isso que conquistou seu lugar ao Sol, suficiente para permitir que migre, sem grandes patrulhas, do "Ritmo do Momento" (era o nome de seu disco de 83) ao rock em 98, todo fora do tempo/espaço.
Lulu Santos, tão bobinho nos 80, é hoje artista de calibre. Inteligente, sabe como ninguém manipular conceitos recolhidos por aí. Desde que não pretenda se passar por tio bêbado ou inventor do rock, vai divertindo o povão enquanto não dá de cara com a própria obra ainda não inventada. Tudo bem, a maioria de seus pares nem reflete sobre conceitos que surrupia. (PAS)



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