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FORNADA DO MILÊNIO
Cuidado com a "verdade húngara"
GERALD THOMAS
em Nova York
Imortalizada por Orson
Welles em seu genial filme "F
for Fake", a "verdade húngara"
volta agora pra fechar, definitivamente, este século de fragmentação e de construção de
todos os valores. A "verdade
húngara" de Welles voltou à
superfície rebatizada de "buzz
news" e parece ser uma arma
importantíssima da propaganda moderna.
Ela pode estar envolvendo
qualquer fato ou produto; pode servir de anestesiante ou
exaltador, dependendo da intenção daquele que a fabrica.
Sem ser propriamente uma
mentira ou tapeação, a "buzz
news" é um recurso para criar
expectativas, uma espécie de
exagero, um trote, um rumor,
uma fábula, uma "falsificação
do bem".
A "buzz news" é uma espécie
de notícia sem fronteiras, sem
fontes e vive por pouco tempo.
Mais cedo ou mais tarde, ela
cai no esquecimento ou é revelada por meio de uma de suas
inúmeras inconsistências.
Assim como uma sinfonia do
(também húngaro) compositor
Gyorgy Ligeti, que embutiu o
riso humano em suas partituras e usa a sonoridade do cochicho e da fofoca como um
instrumento musical, a "buzz
news" já vem acompanhada de
sua possível autonegação,
transformando tudo aquilo
que cruza seu caminho numa
espécie de piada, brincadeira.
Isso é nítido, por exemplo, no
que diz respeito aos cada vez
mais frequentes escândalos sexuais que vazam da Casa
Branca.
Mesmo contrariando todos
os princípios moralistas sobre
os quais a sociedade americana está construída, a "buzz
news" parece ter transformado
a vida sexual de Clinton numa
bem-humorada afirmação de
machismo dos poderosos, e a
popularidade do presidente
parece subir cada vez mais.
"The Truman Show", último
filme do australiano Peter
Weir, foi lançado com uma
calculada campanha "buzz".
"O melhor filme desde "Blade
Runner'", ouvia-se por Nova
York. "A coisa mais importante do cinema, um divisor de
águas", comentavam as pessoas. "Um filme que sumariza
toda a hipocrisia do mundo
moderno e que vai fazer você
rir, chorar... um filme que vai
fazer você pensar", lia-se em
lugares tão incomuns quanto
as colunas sociais.
Mesmo antes da publicação
gigantesca de seus anúncios
imponentes, "The Truman
Show" já era esperadíssimo pelo público, pois a notícia de
sua chegada era circulada por
modelos, intelectuais, pessoas
da alta sociedade. Cerca de 80
pessoas influentes em Nova
York foram contratadas pelos
divulgadores de "The Truman
Show" para que espalhassem
"buzz" pelas festas, vernissages
e estréias. Deu certo. Durante
duas semanas, não se falava
em outra coisa.
"The Truman Show" é, de fato, um belíssimo filme, mas está longe, muito longe de ser um
"Blade Runner". Muito mais
metalinguístico, o filme inclui,
desde o seu início, a revelação
de todos os seus truques. Truman -como o próprio nome
indica, "true man" (homem de
verdade)- é um personagem
"real" num mundo artificial. É
brilhantemente vivida por Jim
Carrey a trajetória desse "homem verdadeiro", nascido e
criado numa enorme cidade
cenográfica, cuja população é
inteiramente composta por figurantes ou extras, acompanhada pela população de todo
o país, diariamente, 24 horas
por dia.
"The Truman Show" é uma
telenovela de proporções amedrontantes. Carrey é um inocente útil que só vem a entender, aos 30 anos de idade, que
algo em sua vida está errado
quando um refletor de cinema
cai, por engano, no meio da
rua.
Ele olha para o céu, com o espanto de um ator de teatro em
cuja cabeça parece desmoronar todo o cenário. A premissa,
em si, é uma mistura de "1984",
de George Orwell, com o mundo caricaturalmente consumista e ingênuo de Andy Warhol. A história é bela e ingênua
e lembra o Brasil em seu fanatismo novelístico. Truman percebe, bem no início do filme,
que é uma vítima de um sistema de fatos fabricados, de um
script previsível, de um hiper-realismo impossível, ou seja, de uma "verdade húngara",
um "buzz".
"Um bom ator muda de personagens com a mesma facilidade que um falsificador passeia por entre as várias fases de
Picasso", diz Orson Welles, em
"F for Fake". Em "The Truman
Show", fica-se na dúvida sobre
quem é o ator e quem é o falsificador, sobre o que é bom ou
ruim.
Assim como foi com " F for
Fake", há mais de 20 anos,
"The Truman Show" também
deixou grande parte da crítica
muda, pois o que está em questão é a própria premissa do crítico, ou seja, a premissa daquele que diz que sabe, que julga,
que autoriza. Carrey foge de
seu criador, de seu crítico. No
final, atravessa uma porta escavada em um paredão de lona, no qual está pintado o céu,
em fundo infinito. Em cima
dessa porta, poderia se ler:
"Cuidado como mundo real.
Cuidado com as mentiras do
mundo real. Cuidado com a
"verdade húngara'."
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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