São Paulo, sexta, 12 de junho de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
Cuidado com a "verdade húngara"

GERALD THOMAS
em Nova York


Imortalizada por Orson Welles em seu genial filme "F for Fake", a "verdade húngara" volta agora pra fechar, definitivamente, este século de fragmentação e de construção de todos os valores. A "verdade húngara" de Welles voltou à superfície rebatizada de "buzz news" e parece ser uma arma importantíssima da propaganda moderna.
Ela pode estar envolvendo qualquer fato ou produto; pode servir de anestesiante ou exaltador, dependendo da intenção daquele que a fabrica. Sem ser propriamente uma mentira ou tapeação, a "buzz news" é um recurso para criar expectativas, uma espécie de exagero, um trote, um rumor, uma fábula, uma "falsificação do bem".
A "buzz news" é uma espécie de notícia sem fronteiras, sem fontes e vive por pouco tempo. Mais cedo ou mais tarde, ela cai no esquecimento ou é revelada por meio de uma de suas inúmeras inconsistências.
Assim como uma sinfonia do (também húngaro) compositor Gyorgy Ligeti, que embutiu o riso humano em suas partituras e usa a sonoridade do cochicho e da fofoca como um instrumento musical, a "buzz news" já vem acompanhada de sua possível autonegação, transformando tudo aquilo que cruza seu caminho numa espécie de piada, brincadeira. Isso é nítido, por exemplo, no que diz respeito aos cada vez mais frequentes escândalos sexuais que vazam da Casa Branca.
Mesmo contrariando todos os princípios moralistas sobre os quais a sociedade americana está construída, a "buzz news" parece ter transformado a vida sexual de Clinton numa bem-humorada afirmação de machismo dos poderosos, e a popularidade do presidente parece subir cada vez mais.
"The Truman Show", último filme do australiano Peter Weir, foi lançado com uma calculada campanha "buzz". "O melhor filme desde "Blade Runner'", ouvia-se por Nova York. "A coisa mais importante do cinema, um divisor de águas", comentavam as pessoas. "Um filme que sumariza toda a hipocrisia do mundo moderno e que vai fazer você rir, chorar... um filme que vai fazer você pensar", lia-se em lugares tão incomuns quanto as colunas sociais.
Mesmo antes da publicação gigantesca de seus anúncios imponentes, "The Truman Show" já era esperadíssimo pelo público, pois a notícia de sua chegada era circulada por modelos, intelectuais, pessoas da alta sociedade. Cerca de 80 pessoas influentes em Nova York foram contratadas pelos divulgadores de "The Truman Show" para que espalhassem "buzz" pelas festas, vernissages e estréias. Deu certo. Durante duas semanas, não se falava em outra coisa.
"The Truman Show" é, de fato, um belíssimo filme, mas está longe, muito longe de ser um "Blade Runner". Muito mais metalinguístico, o filme inclui, desde o seu início, a revelação de todos os seus truques. Truman -como o próprio nome indica, "true man" (homem de verdade)- é um personagem "real" num mundo artificial. É brilhantemente vivida por Jim Carrey a trajetória desse "homem verdadeiro", nascido e criado numa enorme cidade cenográfica, cuja população é inteiramente composta por figurantes ou extras, acompanhada pela população de todo o país, diariamente, 24 horas por dia.
"The Truman Show" é uma telenovela de proporções amedrontantes. Carrey é um inocente útil que só vem a entender, aos 30 anos de idade, que algo em sua vida está errado quando um refletor de cinema cai, por engano, no meio da rua.
Ele olha para o céu, com o espanto de um ator de teatro em cuja cabeça parece desmoronar todo o cenário. A premissa, em si, é uma mistura de "1984", de George Orwell, com o mundo caricaturalmente consumista e ingênuo de Andy Warhol. A história é bela e ingênua e lembra o Brasil em seu fanatismo novelístico. Truman percebe, bem no início do filme, que é uma vítima de um sistema de fatos fabricados, de um script previsível, de um hiper-realismo impossível, ou seja, de uma "verdade húngara", um "buzz".
"Um bom ator muda de personagens com a mesma facilidade que um falsificador passeia por entre as várias fases de Picasso", diz Orson Welles, em "F for Fake". Em "The Truman Show", fica-se na dúvida sobre quem é o ator e quem é o falsificador, sobre o que é bom ou ruim.
Assim como foi com " F for Fake", há mais de 20 anos, "The Truman Show" também deixou grande parte da crítica muda, pois o que está em questão é a própria premissa do crítico, ou seja, a premissa daquele que diz que sabe, que julga, que autoriza. Carrey foge de seu criador, de seu crítico. No final, atravessa uma porta escavada em um paredão de lona, no qual está pintado o céu, em fundo infinito. Em cima dessa porta, poderia se ler: "Cuidado como mundo real. Cuidado com as mentiras do mundo real. Cuidado com a "verdade húngara'."

E-mail: geraldthomas@uol.com.br



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