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RESENHA DA SEMANA
Curto-circuito da mentira
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Quando veio ao Brasil em 93
para lançar seu romance "O
Amante do Vulcão", Susan
Sontag se disse revoltada com
um texto de Harold Brodkey
que acabava de sair na "The
New Yorker" e cuja repercussão num certo meio cultural
brasileiro (que segue venerando a prestigiosa e em geral simpática revista como se fosse a
"Bíblia") tinha sido retumbante, embora raros fossem os que
alguma vez tinham aberto por
aqui algum livro do escritor.
"To My Readers" ("Aos Meus
Leitores"), de junho de 93, era
uma "confissão", um relato autobiográfico em que o autor da
coletânea de contos "Quatro
Histórias ao Modo Quase Clássico" (lançada no Brasil, no ano
passado, pela Imago) revelava
por fim -aos 62 anos, casado
pela segunda vez, pai de família
e avô- que estava com Aids
(Brodkey morreu em 96).
A revolta de Sontag era "política". Uma reação ao que lhe
parecia uma mentira deslavada
(Brodkey dizia que tinha ficado
20 anos com o vírus incubado,
já que suas últimas aventuras
homossexuais datavam de
mais de 20 anos antes -embora uma coisa não seja necessariamente causa da outra) e à irresponsabilidade daquela declaração leviana, que propagava, por causa de uma impostura pessoal, uma inverdade
científica. Segundo Sontag, todo mundo em Nova York sabia
que Harold Brodkey, apesar
dos riscos, sempre tinha levado
uma vida sexual promíscua.
Quem ler os ensaios do escritor reunidos em "Sea Battles on
Dry Land" ("Batalhas Navais
em Terra Firme") vai entender
que a verdade para Brodkey é
uma coisa relativa. Sua obsessão pelo que chama de "relativismo" -numa acepção pessoal, pragmática e imediatista,
típica de um certo ensaísmo
americano- fica evidente nessa coletânea de textos publicados entre 1972 e 1995 e que tratam, entre outros, de Marlon
Brando, Woody Allen, do fascismo americano, de NY, de
moda, sexo e literatura.
Sobre esta última, Brodkey
diz o seguinte: "É claro que não
se trata de uma "transcrição" da
realidade ou do que os olhos
vêem (...). Se o que eu faço fossem transcrições da realidade,
outra pessoa teria feito o mesmo -muitos escritores estão
tentando fazer isso agora. (...)
Se sou realista? Sim. Mas um
realista que considera a realidade psicologicamente e espiritualmente -e politicamente- complexa".
Numa entrevista ao jornal
"Libération", em 88, o escritor
dizia que "há 50 romances nos
quais apareço como protagonista. Meus primeiros contos
ajudaram muito outros escritores: Updike, Roth, Nabokov
quando ele tentava escrever em
inglês. Seu romance "Pnin", por
exemplo, é a imitação dos meus
contos". Há uma ironia descarada nessa fetichização de si
mesmo, na mentira em torno
de si mesmo, ainda mais numa
sociedade que funciona pela
glamourização pessoal em detrimento das obras: "É muito
estranho. Pessoas que eu nunca
encontrei escreveram artigos
em que se dizem próximas de
mim. (...) Nunca disse nada do
que me atribuem na imprensa". Uma ironia (interior e)
contra essa cultura da publicidade e do marketing que faz
com que "a reputação talvez seja a principal forma da arte".
"Amar os livros não é necessariamente amar os autores",
escreveu Brodkey sobre o poeta
Frank O'Hara, seu companheiro de Harvard. "Como você
distingue entre escritores que
são muito interessantes em certos momentos e os que são interessantes graças a suas vidas e
suas carreiras, mas que nunca
escreveram (...) um livro que
tenha realmente alguma importância para o seu próprio
tempo ou para o futuro ou para
ambos? (...) Os leitores são
sempre indivíduos. Um bom
romance não pode ter um público de massa a despeito do
número de pessoas que o lêem.
Um romance é uma proposta
de um para um. (...) Em parte, é
por isso que é difícil escrever
sobre romances."
O ensaísmo de Brodkey não é
de grandes idéias -e muitas
vezes nem mesmo de idéias. É
uma espécie de jornalismo,
mas cuja verdade é de escritor,
de ficção. Ela é fruto de uma
observação interessada, um
empirismo nova-iorquino
combinado com um estilo pessoal em que a invenção, na impossibilidade de apresentar
uma realidade comum a todos,
garante pelo menos a originalidade do olhar do autor.
Em seus melhores momentos, Brodkey transforma o lugar-comum com a perspicácia
de sua sensibilidade: "Não sou
fã desse negócio de "cultura
média" (...) Não é arte. É seguro.
É protegido". Arte é outra coisa. Para ele, "falsa confissão é o
que a ficção e a pintura são".
Pois, num mercado cultural de
massa que quer impor a média,
o gosto mediano, como verdade absoluta, cabe somente à arte de verdade provocar um curto-circuito, e ser mentira.
Avaliação:
Livro: Sea Battles on Dry Land
Autor: Harold Brodkey
Lançamento: Metropolitan Books
Quanto: US$ 30 (452 págs.)
Onde encomendar: www.amazon.com
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