São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Curto-circuito da mentira

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Quando veio ao Brasil em 93 para lançar seu romance "O Amante do Vulcão", Susan Sontag se disse revoltada com um texto de Harold Brodkey que acabava de sair na "The New Yorker" e cuja repercussão num certo meio cultural brasileiro (que segue venerando a prestigiosa e em geral simpática revista como se fosse a "Bíblia") tinha sido retumbante, embora raros fossem os que alguma vez tinham aberto por aqui algum livro do escritor.
"To My Readers" ("Aos Meus Leitores"), de junho de 93, era uma "confissão", um relato autobiográfico em que o autor da coletânea de contos "Quatro Histórias ao Modo Quase Clássico" (lançada no Brasil, no ano passado, pela Imago) revelava por fim -aos 62 anos, casado pela segunda vez, pai de família e avô- que estava com Aids (Brodkey morreu em 96).
A revolta de Sontag era "política". Uma reação ao que lhe parecia uma mentira deslavada (Brodkey dizia que tinha ficado 20 anos com o vírus incubado, já que suas últimas aventuras homossexuais datavam de mais de 20 anos antes -embora uma coisa não seja necessariamente causa da outra) e à irresponsabilidade daquela declaração leviana, que propagava, por causa de uma impostura pessoal, uma inverdade científica. Segundo Sontag, todo mundo em Nova York sabia que Harold Brodkey, apesar dos riscos, sempre tinha levado uma vida sexual promíscua.
Quem ler os ensaios do escritor reunidos em "Sea Battles on Dry Land" ("Batalhas Navais em Terra Firme") vai entender que a verdade para Brodkey é uma coisa relativa. Sua obsessão pelo que chama de "relativismo" -numa acepção pessoal, pragmática e imediatista, típica de um certo ensaísmo americano- fica evidente nessa coletânea de textos publicados entre 1972 e 1995 e que tratam, entre outros, de Marlon Brando, Woody Allen, do fascismo americano, de NY, de moda, sexo e literatura.
Sobre esta última, Brodkey diz o seguinte: "É claro que não se trata de uma "transcrição" da realidade ou do que os olhos vêem (...). Se o que eu faço fossem transcrições da realidade, outra pessoa teria feito o mesmo -muitos escritores estão tentando fazer isso agora. (...) Se sou realista? Sim. Mas um realista que considera a realidade psicologicamente e espiritualmente -e politicamente- complexa".
Numa entrevista ao jornal "Libération", em 88, o escritor dizia que "há 50 romances nos quais apareço como protagonista. Meus primeiros contos ajudaram muito outros escritores: Updike, Roth, Nabokov quando ele tentava escrever em inglês. Seu romance "Pnin", por exemplo, é a imitação dos meus contos". Há uma ironia descarada nessa fetichização de si mesmo, na mentira em torno de si mesmo, ainda mais numa sociedade que funciona pela glamourização pessoal em detrimento das obras: "É muito estranho. Pessoas que eu nunca encontrei escreveram artigos em que se dizem próximas de mim. (...) Nunca disse nada do que me atribuem na imprensa". Uma ironia (interior e) contra essa cultura da publicidade e do marketing que faz com que "a reputação talvez seja a principal forma da arte".
"Amar os livros não é necessariamente amar os autores", escreveu Brodkey sobre o poeta Frank O'Hara, seu companheiro de Harvard. "Como você distingue entre escritores que são muito interessantes em certos momentos e os que são interessantes graças a suas vidas e suas carreiras, mas que nunca escreveram (...) um livro que tenha realmente alguma importância para o seu próprio tempo ou para o futuro ou para ambos? (...) Os leitores são sempre indivíduos. Um bom romance não pode ter um público de massa a despeito do número de pessoas que o lêem. Um romance é uma proposta de um para um. (...) Em parte, é por isso que é difícil escrever sobre romances."
O ensaísmo de Brodkey não é de grandes idéias -e muitas vezes nem mesmo de idéias. É uma espécie de jornalismo, mas cuja verdade é de escritor, de ficção. Ela é fruto de uma observação interessada, um empirismo nova-iorquino combinado com um estilo pessoal em que a invenção, na impossibilidade de apresentar uma realidade comum a todos, garante pelo menos a originalidade do olhar do autor.
Em seus melhores momentos, Brodkey transforma o lugar-comum com a perspicácia de sua sensibilidade: "Não sou fã desse negócio de "cultura média" (...) Não é arte. É seguro. É protegido". Arte é outra coisa. Para ele, "falsa confissão é o que a ficção e a pintura são". Pois, num mercado cultural de massa que quer impor a média, o gosto mediano, como verdade absoluta, cabe somente à arte de verdade provocar um curto-circuito, e ser mentira.


Avaliação:    

Livro: Sea Battles on Dry Land Autor: Harold Brodkey Lançamento: Metropolitan Books Quanto: US$ 30 (452 págs.) Onde encomendar: www.amazon.com

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