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São Paulo, sábado, 12 de julho de 2003

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"OS TAMBORES DA CHUVA"

Autor descreve cerco otomano a fortaleza cristã

Kadaré retrata formação da identidade albanesa

PAULO DANIEL FARAH
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em pleno furor expansionista no século 15, o Império Otomano entra nos Bálcãs e se prepara para continuar a invadir o território europeu ao alcance. A Albânia oferece firme resistência sob o comando de George Kastriota "Skanderbeu", mas os otomanos tentam de todas as formas se apossar de uma fortaleza-chave: à força, pela sede e pela doença.
Nem as tropas de elite nem os batalhões de curdos, persas, caucasianos, calmucos, mongóis ou as hordas de voluntários, porém, conseguem impedir que os tambores da chuva ressoem e anunciem o fracasso da campanha.
"Os Tambores da Chuva", de Ismail Kadaré, baseia-se em fatos históricos sobre esse cerco a uma fortaleza cristã e fala da própria formação da identidade albanesa.
A descrição minuciosa das tropas otomanas e dos combates enfatiza o trabalho de pesquisa de Kadaré. O autor recorreu a escritos de cronistas turcos e se inspirou em um texto albanês de 1504, "O Cerco de Shkodra", redigido pelo padre Marin Barlet, que presenciou três cercos a essa cidade ao norte da Albânia (em 1474, 1478 e 1479).
Como em uma crônica, Kadaré introduz paulatinamente a angústia do cerco em meio ao calor, à morte e à falta d'água. A maior parte do romance se passa no campo otomano, mas, por vezes, o narrador em terceira pessoa dá lugar a relatos em primeira pessoa de um albanês, o que ajuda a dividir a simpatia dos leitores entre os dois lados envolvidos no cerco.
Nascido em 1936, Kadaré viu sua cidade natal (Gjirokastra, onde também nasceu o ditador Enver Hoxha) sofrer sucessivas ocupações, como a de italianos e alemães. Desde então, publicou diversos romances inspirados na história ou em lendas albanesas.
Auto-exilado na França desde 1990, pouco antes da queda do comunismo em sua terra natal, Kadaré teve o perigoso privilégio de ser um escritor renomado sob uma ditadura como a de Hoxha -a maior parte de sua obra literária foi escrita e publicada sob esse regime comunista.
Mais conhecido no Brasil depois da adaptação cinematográfica que Walter Salles fez de seu "Abril Despedaçado" (levado ao sertão brasileiro), Kadaré aborda em "Os Tambores da Chuva" a imposição do poder, não mais pelas vendetas, mas pelo jugo militar e pela tramas da ambição.
Além do interesse histórico, o romance pode ser lido como uma metáfora da agressão do Império Soviético e do isolamento que a Albânia conheceu após a Segunda Guerra Mundial. Já na visão de alguns críticos albaneses, o país é retratado como bastião do marxismo autêntico ante revisionistas soviéticos e imperialistas.
Nesta obra, publicada originalmente em 1970 e que agora ganha uma tradução direta do albanês, a resistência ao controle estrangeiro é exaltada numa paisagem permeada de montanhas.
Personagens como Ugurlú Tursun paxá, o comandante-em-chefe das tropas, ou o cronista Mevla Tcheleb se esmeram para descrever a geografia tão típica daquela região, que ameaça o expansionismo do Império Otomano embora este se encontrasse no auge.
O paxá "nunca vira montanhas assim. Assemelhavam-se a um pesadelo dos piores, desses esmagadores, que não deixam você acordar". E o cronista aperfeiçoa o assombro: "Eram escarpas tão altas -dizia- que nem os corvos as sobrevoavam. Só o demônio poderia escalá-las, ainda assim de cajado em punho, e a muito custo, estropiando as alpercatas".


Paulo Daniel Farah é professor na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Os Tambores da Chuva    
Autor: Ismail Kadaré
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (328 págs.)


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