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São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 2003

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FERNANDO BONASSI

Muita atenção com esses caras!

São esses caras que ficam quietos onde é preciso dar um grito. São esses caras que falam demais na aflição do silêncio. São esses caras que querem governar por aqui e deixam o dinheiro guardado lá fora. São esses caras que lançam coisas malcheirosas nos ventiladores dos paraísos fiscais. São esses caras que, à primeira inspeção, acenam com advogados. São esses caras que furtam, esses caras que batem, esses caras que alisam...
São esses caras que contaminam a população por via das dúvidas. São esses caras que prometem, vendendo numa planta o que deixam de construir. São esses caras que soterram esperanças com juros, taxas e impostos, fazendo a garra do débito arranhar os desgraçados. São esses caras que conseguem dormir com os seus crimes. São esses caras que se orgulham deles. São esses caras e suas obsessões e seus átomos fissurados. São esses caras que se desculpam pelas bombas inventadas e pelos estragos malfeitos. São esses caras que se dizem preocupados com as baixas e assinam as convocações pra guerra. São esses caras que treinam coitados, transformando-os em soldados. São esses caras que já tiveram demais, discutindo por quem precisa de pouco. São esses que nada sabem, que lamentam profundamente, que não podem se envolver nem se responsabilizar...
São esses caras e suas novelas nos prendendo à cadeia local da burrice moral via satélite. São esses caras expondo crianças peladas pra deleite da família brasileira. São esses caras que defecam sua insegurança nos noticiários assustados. São esses caras e seus jogos empatados. São esses caras retocados, esses caras de inteligência artificial, caras que não têm vergonha da própria imagem de fracasso...
São esses caras que se escondem atrás de aleijados, retardados, cegos e crianças desmamadas; que acham que a felicidade é um encosto demoníaco, que querem enfiar Deus por nossas goelas sufocadas de perdão e obscurantismo...
São esses caras enlutados que acham que sabem de lésbicas e viados...
São esses caras que dão entrevistas pra exigir salário esposa, salário sogra, salário esperteza e folga e abono e pensão e ainda aceitariam um aumento no "salário tédio"...
São esses caras que vivem de rendas bordadas com o sacrifício dos outros. São esses caras que mandam avisos, que aguardam ordens, que fazem o possível...
São esses caras operários que não obram. São esses caras doutores que não pensam. São esses caras que querem se aposentar com tudo porque trabalharam o suficiente. Esses caras que acham que devemos morrer trabalhando. São esses caras que deixam que se dane, que julgam que devem, que escolhem não pagar, que desejam não morrer. São esses caras que não conseguem parar, que aceleram na última hora, que deixam pro último dia, que enchem a cara, que entram na marra. São filas duplas, carros por cima das calçadas e cadáveres espalhados no asfalto. São granadas das forças armadas, metralhadoras apontadas e facas espetadas nas gargantas...
São esses caras que respondem pelos planos, que oferecem todas as garantias, que asseguram que o sacrifício é necessário. São esses caras que repartem o bolo, que dão banana, que esmagam pão. São esses caras que controlam a oferta pra controlar a procura. Esses caras agarrados aos relógios de ouro, às pastas de couro, aos cheques sem fundo. Esses caras que não se acham, que têm certezas, que estão na dúvida. São esses caras que cospem nos pratos em que comem, que apostam aquilo que não têm, que rosnam nas portas elegantes. São esses caras que chutam cachorros esfomeados e que enchem a boca de seus filhos com o que deveria ser papel higiênico de repartição pública. São esses caras que cafetinam artistas com passagens patrocinadas, estadias bem pagas e catálogos impressos na China medieval. Esses caras e sua propaganda de filmes e seus filmes de propaganda. São esses caras que criam por encomenda, que assinam pelos outros, que passam procurações...
São esses caras que gostam de falar, que costumam falhar e que a essa hora já estão rindo da nossa cara de palhaço. São esses caras que podem surgir, que querem sumir, que gostam de aparecer. São esses caras constantemente reeleitos por colégios eleitorais suspeitos, fazendo questão de exibir seus diplomas de maioria e seus certificados de independência. São esses caras que permanecem apesar de todos os ódios, todas as pragas, todos os tiros. São esses caras velhos que não largam o osso. São esses caras maduros que não vão nem desocupam a moita. São esses caras jovens que não sabem o que não querem. São monstros de estimação fornidos em mansões hereditárias...
São esses caras que esperam parar, que ameaçam fugir. Esses caras que erguem os muros da discórdia sem vergonha; judeus blindados, muçulmanos explosivos, católicos incomodados, protestantes que não se mudam... esses caras que nos espancam com as suas razões e o seu bom senso, inscrevendo ódio na encruzilhada da história.
São esses caras que não controlam seus instintos estúpidos nem suas vontades mesquinhas. São esses caras que se sujam por pouco, por muito, por tudo ou por nada... esses caras que parecem consigo, que parecem comigo!
Esses caras... são esses caras... vejam só esses caras... esses os caras... muita atenção com esses caras!


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