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NELSON ASCHER
A lei das conseqüências imprevistas
Oh istoriador Bernard Lewis,
referindo-se à "revolução islâmica" que, em 1979, levou o aiatolá Khomeini ao poder no Irã,
observou certa vez que, para entender adequadamente toda
aquela seqüência de eventos, cabia saber que esta, a rigor, tinha
mais de "revolução" que de "islâmica". Isto é: as transformações
políticas do país, não obstante a
retórica religiosa de seus condutores e apologistas, faziam mais
sentido à luz, digamos, de 1917,
1848 ou 1789 no Ocidente cristão
do que através do prisma histórico do Oriente Médio muçulmano.
No quarto aniversário dos mega-atentados perpetrados em Nova York e Washington, a observação acima se mostra mais pertinente do que nunca.
Se as atrocidades do 11 de Setembro foram cometidas por gente oriunda do universo islâmico,
motivada por sua fé e no contexto
de um profundo conflito interno
em seu mundo, um conflito desencadeado pela resistência à modernização assustadoramente
abolidora de antigos modos de vida, elas trouxeram também à tona e acentuaram contradições em
que o Ocidente vive há séculos,
desde o início de sua própria modernização inconclusa. Trata-se,
de certa forma, de duas revoluções paralelas que, embora desiguais e assincrônicas, graças a
uma ação não menos catalítica
do que cataclísmica, acabaram se
combinando em seu clímax.
É só levando em consideração,
primeiro, o caráter revolucionário de nossos tempos e, segundo, a
regressão ou simples abastardamento seja do ideário iluminista,
seja de seus pretensos herdeiros,
que se torna possível compreender, por exemplo, alinhamentos
aparentemente absurdos como o
que fez convergirem rumo a um
mesmo campo ou partido militantes da antiglobalização e teocratas medievais.
Muito mais do que uma aliança
tática ou de conveniência incentivada pela percepção de inimigos
comuns, o bloco que reúne os perdedores de 1989 e os de 1492, os
nostálgicos da imaginária solidariedade pré-capitalista e os aspirantes ao martírio em prol de alguma divindade, uma intelectualidade que se julga subempregada
ou subestimada e clérigos generosamente subvencionados com petrodólares, gays e feministas de
um lado e homófobos e misóginos
do outro, fundamentalistas dos
direitos humanos ou da liberdade
de expressão e decapitadores de
reféns ou jornalistas, esse bloco,
enfim, representa tanto a oposição à globalização como a globalização da oposição seja ao que
for.
Movimentos e forças, idéias e
organizações, indivíduos diversos
e slogans variados que, quatro
anos atrás, não pareciam ter nada em comum salvo um descontentamento ou rancor difusos
contra algumas entre as ordens
estabelecidas (em geral, precisamente as que funcionam melhor),
agora estão de braços dados à luz
do dia, não ocultam suas mútuas
simpatias e encarnam uma política que, coerente a seu modo, requer análise e interpretação.
Convém frisar que nada disso seria tão patente e transparente
sem o empurrãozinho dado por
Osama bin Laden.
Todos esses elementos disparatados, no entanto, aglutinaram-se sobretudo por fraqueza. Malgrado, uma vez reunido e operando aberta e ruidosamente, o bloco
em questão ostentar uma fachada poderosa e temível, seus dias
de apogeu são coisa do passado.
Passado recente, aliás. Seus anos
de glória, podemos vê-lo finalmente, confinam-se à década de
90. Foi esse o período quando
existia de fato a possibilidade de
que uma forma de atuação conhecida como "soft power" e exercida por ONGs ou materializada
em grupos de pressão, em instituições que se reivindicando originárias da sociedade civil contavam com o apoio moral, diplomático e material de nações soberanas e seus governos, sobrepujasse, quase eclipsando, os detentores do poder de verdade, do "hard
power".
Valendo-se de uma espécie de
guerrilha pluridimensional travada à socapa, sutil e eficazmente, com recursos tradicionais e outros inéditos nas ruas como nos
organismos internacionais, nas
universidades e escolas como nos
meios de comunicação, o bloco
oposicionista, aproveitando-se
antes de mais nada do ardil predileto do demônio, aquele que se
resume em convencer-nos de que
não existe, conquistou, no correr
de um decênio, vitórias memoráveis, entre as quais vale a pena
enumerar: a criação de uma terminologia completa que pré-condiciona e direciona os debates relevantes, o ter conseguido pautar
os assuntos que mereciam e/ou
podiam ser discutidos bem como
sua hierarquia, o estabelecimento
de tabus que ainda perduram
mundo afora etc. Acima de tudo,
durante a década ou década e
meia que precedeu a destruição
das torres gêmeas, esse bloco tomou e manteve firmemente a iniciativa.
A começar pelas vítimas diretas, não faltaram perdedores no
ponto de inflexão marcado para
sempre por uma determinada
manhã ensolarada de outono no
hemisfério norte. Para júbilo de
muitos, surgido literalmente do
céu azul, o sonho pressagiado por
Carlos Drummond de Andrade
em sua "Elegia 1938" ("Aceitas a
chuva, a guerra, o desemprego e a
injusta distribuição/ porque não
podes, sozinho, dinamitar a ilha
de Manhattan") e repetido em seguida por um sem número de
poetas, escritores e ideólogos, concretizou-se de repente e logo principiou a gerar uma infinidade de
conseqüências, cada qual mais
imprevista que a anterior.
A menos esperada então, se
bem que óbvia hoje, foi a de que o
tiro, saindo pela culatra e revelando o jogo, forçou o bloco oposicionista a ensaiar sua retirada,
estrepitosa mas final, do palco da
história. Fossem seus membros
capazes de outro pensamento que
o veleitário ("wishful thinking"),
eles talvez descobrissem quem e o
quê provocaram sua derrota.
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