São Paulo, segunda-feira, 12 de setembro de 2005

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NELSON ASCHER

A lei das conseqüências imprevistas

Oh istoriador Bernard Lewis, referindo-se à "revolução islâmica" que, em 1979, levou o aiatolá Khomeini ao poder no Irã, observou certa vez que, para entender adequadamente toda aquela seqüência de eventos, cabia saber que esta, a rigor, tinha mais de "revolução" que de "islâmica". Isto é: as transformações políticas do país, não obstante a retórica religiosa de seus condutores e apologistas, faziam mais sentido à luz, digamos, de 1917, 1848 ou 1789 no Ocidente cristão do que através do prisma histórico do Oriente Médio muçulmano.
No quarto aniversário dos mega-atentados perpetrados em Nova York e Washington, a observação acima se mostra mais pertinente do que nunca.
Se as atrocidades do 11 de Setembro foram cometidas por gente oriunda do universo islâmico, motivada por sua fé e no contexto de um profundo conflito interno em seu mundo, um conflito desencadeado pela resistência à modernização assustadoramente abolidora de antigos modos de vida, elas trouxeram também à tona e acentuaram contradições em que o Ocidente vive há séculos, desde o início de sua própria modernização inconclusa. Trata-se, de certa forma, de duas revoluções paralelas que, embora desiguais e assincrônicas, graças a uma ação não menos catalítica do que cataclísmica, acabaram se combinando em seu clímax.
É só levando em consideração, primeiro, o caráter revolucionário de nossos tempos e, segundo, a regressão ou simples abastardamento seja do ideário iluminista, seja de seus pretensos herdeiros, que se torna possível compreender, por exemplo, alinhamentos aparentemente absurdos como o que fez convergirem rumo a um mesmo campo ou partido militantes da antiglobalização e teocratas medievais.
Muito mais do que uma aliança tática ou de conveniência incentivada pela percepção de inimigos comuns, o bloco que reúne os perdedores de 1989 e os de 1492, os nostálgicos da imaginária solidariedade pré-capitalista e os aspirantes ao martírio em prol de alguma divindade, uma intelectualidade que se julga subempregada ou subestimada e clérigos generosamente subvencionados com petrodólares, gays e feministas de um lado e homófobos e misóginos do outro, fundamentalistas dos direitos humanos ou da liberdade de expressão e decapitadores de reféns ou jornalistas, esse bloco, enfim, representa tanto a oposição à globalização como a globalização da oposição seja ao que for.
Movimentos e forças, idéias e organizações, indivíduos diversos e slogans variados que, quatro anos atrás, não pareciam ter nada em comum salvo um descontentamento ou rancor difusos contra algumas entre as ordens estabelecidas (em geral, precisamente as que funcionam melhor), agora estão de braços dados à luz do dia, não ocultam suas mútuas simpatias e encarnam uma política que, coerente a seu modo, requer análise e interpretação. Convém frisar que nada disso seria tão patente e transparente sem o empurrãozinho dado por Osama bin Laden.
Todos esses elementos disparatados, no entanto, aglutinaram-se sobretudo por fraqueza. Malgrado, uma vez reunido e operando aberta e ruidosamente, o bloco em questão ostentar uma fachada poderosa e temível, seus dias de apogeu são coisa do passado. Passado recente, aliás. Seus anos de glória, podemos vê-lo finalmente, confinam-se à década de 90. Foi esse o período quando existia de fato a possibilidade de que uma forma de atuação conhecida como "soft power" e exercida por ONGs ou materializada em grupos de pressão, em instituições que se reivindicando originárias da sociedade civil contavam com o apoio moral, diplomático e material de nações soberanas e seus governos, sobrepujasse, quase eclipsando, os detentores do poder de verdade, do "hard power".
Valendo-se de uma espécie de guerrilha pluridimensional travada à socapa, sutil e eficazmente, com recursos tradicionais e outros inéditos nas ruas como nos organismos internacionais, nas universidades e escolas como nos meios de comunicação, o bloco oposicionista, aproveitando-se antes de mais nada do ardil predileto do demônio, aquele que se resume em convencer-nos de que não existe, conquistou, no correr de um decênio, vitórias memoráveis, entre as quais vale a pena enumerar: a criação de uma terminologia completa que pré-condiciona e direciona os debates relevantes, o ter conseguido pautar os assuntos que mereciam e/ou podiam ser discutidos bem como sua hierarquia, o estabelecimento de tabus que ainda perduram mundo afora etc. Acima de tudo, durante a década ou década e meia que precedeu a destruição das torres gêmeas, esse bloco tomou e manteve firmemente a iniciativa.
A começar pelas vítimas diretas, não faltaram perdedores no ponto de inflexão marcado para sempre por uma determinada manhã ensolarada de outono no hemisfério norte. Para júbilo de muitos, surgido literalmente do céu azul, o sonho pressagiado por Carlos Drummond de Andrade em sua "Elegia 1938" ("Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan") e repetido em seguida por um sem número de poetas, escritores e ideólogos, concretizou-se de repente e logo principiou a gerar uma infinidade de conseqüências, cada qual mais imprevista que a anterior.
A menos esperada então, se bem que óbvia hoje, foi a de que o tiro, saindo pela culatra e revelando o jogo, forçou o bloco oposicionista a ensaiar sua retirada, estrepitosa mas final, do palco da história. Fossem seus membros capazes de outro pensamento que o veleitário ("wishful thinking"), eles talvez descobrissem quem e o quê provocaram sua derrota.

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