São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998

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Ironia aproxima leitor do romance

da Redação

Quem acreditaria, hoje, que a paixão de um jovem de vinte e poucos anos por uma menina de 12 pudesse ser desprovida de malícia e não consistir em alguma forma de deformação de caráter?
Em tempos de sites dedicados à pornografia infantil na Internet, de notícias de pedofilia e abuso de menores, de filmes "Lolita" baseados na obra do escritor russo Nabokov no cinema (dois estão em cartaz em São Paulo, um de Adrian Lyne e outro de Stanley Kubrick), situar uma paixão desse tipo no século 18 e dar-lhe um caráter diferente -leia-se puro e utópico- sem torná-la por demais ingênua ou inverossímil é tarefa das mais árduas.
Uma saída é não levar a história a sério. Outra é optar pelo caminho que Penelope Fitzgerald tomou em seu "A Flor Azul" -o de trazer à tona o que ela tem de ironia.
No século 18, o jovem poeta Friedrich von Hardenberg, que passou para a posteridade como Novalis, apaixona-se pela jovem Sophie, 12, de comportamento tão infantil quanto o que seria natural para a sua idade. É justamente essa infantilidade (ou ingenuidade) que atrai Fritz (apelido de Friedrich) e que faz de Sophie a sua "sabedoria".
Ou seja, não é o frescor de sua carne o que faz o jovem perder a cabeça, mas o de seu espírito. É isso o que coloca esse amor a anos-luz de qualquer referência que se tem do assunto hoje.
É então que entra o talento de Penelope, que não inventou essa paixão -baseou-se em cartas e diários de Novalis para escrever o livro-, mas a reconstituiu sem ignorar a época em que vive.
Daí o humor presente em sua narrativa, a única saída que parece viável para um autor que pretende descrever um amor impossível do século 18 em fins do século 20.
Humor que resulta em ironia e distancia o narrador dos acontecimentos, mas também o aproxima do leitor de hoje, traz a história para mais perto dele.
Penelope fica no meio do caminho entre as duas épocas. Oferece um olhar contemporâneo à história -como quando parece ver com ironia o fato de o diário de Sophie registrar diversas vezes a frase "Hoje ficamos outra vez sozinhos e não aconteceu nada de importante.", vendo nisso o tédio que a vida da época despertaria hoje- sem "adaptá-la" à atualidade.
Respeita, apesar de seu humor, os fatos que descreve -o que lhe permite não retirar da história sua carga de drama e tragicidade.
Sua "modernidade" está presente também na rapidez que marca sua narrativa, que a faz passar de um evento a outro quase sem que o leitor se dê conta. Recurso que parece buscar a fluidez da leitura, muitas vezes resulta em entrave, deixando a impressão de que há lacunas na narrativa, mas que não impede que se crie uma atmosfera envolvente. (CS)
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Livro: A Flor Azul Autor: Penelope Fitzgerald Lançamento: Bertrand Brasil Quanto: R$ 29 (272 págs.)


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