São Paulo, Sexta-feira, 12 de Novembro de 1999
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TRECHO

"Ouvimos pelo rádio que os jovens não serão mais obrigados a fazer os exames de admissão. Ficamos encantados. Era um exame difícil e absurdo, pelo que os garotos se sentem felizes por lhe escapar. Agora é que eles (o governo) compreenderam que ir à escola não serve de nada. Há outras coisas mais importantes, como o poder, o dinheiro... São incapazes de estabelecer uma ligação entre os conhecimentos, o poder e o dinheiro, o que nunca acontecerá depois desta guerra.
Do estrangeiro me perguntam como reage a população sérvia à morte dos refugiados que foram aniquilados pelos bombardeamentos. Mas que pergunta esta! Do mesmo modo que reagem perante a morte de qualquer civil, perante as mortes em número excessivo neste "bombardeamento humanitário". Nunca me ocorreu fazer discriminação entre os mortos albaneses e os mortos sérvios. É evidente que a população dos países-membros da Otan pensa de maneira diferente. São as suas bombas, o seu dinheiro e os seus impostos, tal como costumam dizer os cidadãos de países democráticos. Têm o direito de eleger as suas vítimas.
(...)
Acabei de ver "1984", baseado no livro de George Orwell. É curioso como me fez pensar nos meus próprios sentimentos. Se sou uma personagem dessa tragédia, só pode querer dizer que existe uma qualquer espécie de vida normal a decorrer algures. Sim, minha cara amiga em qualquer parte do mundo onde te encontras a salvo, diz-me que existe uma coisa a que podemos chamar normalidade. Nós, cujos amores foram destruídos pela fome, cuja sexualidade foi destruída pela impossibilidade de nos sentirmos belas e desejadas, nós que abjuramos a nossa família, nós somos o baluarte da normalidade. Porque a perdemos, porque temos de lutar por ela.


Trecho do livro "Uma Guerra que Fosse Sua", da escritora sérvia Jasmina Tesanovic




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