São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

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RESENHA
Theroux inventa Theroux em "Minha Outra Vida'

CECÍLIA SAYAD
da Redação


Paul Theroux é conhecido como um autor de livros de viagem. E, ainda que "Minha Outra Vida", recém-lançado no Brasil, seja definido por ele como suas "memórias imaginárias", é como viajante ou exilado que o escritor se comporta diante da narrativa dos eventos, reais ou inventados, que integram o universo de sua própria existência.
É bom deixar claro que o romance de cunho autobiográfico até narra episódios vividos pelo escritor norte-americano na África, em Cingapura e em Londres (onde morou por vários anos).
Mas é justamente ao centrar a narrativa mais em aspectos pessoais do que exteriores, ao tratar da vida pessoal do autor e não da descrição de vidas alheias ou paisagens, que Theroux acaba mostrando que a condição de viajante é antes um estado de espírito.
Mas o que define um viajante? Aqui, o estranhamento inicial que pode acompanhar a chegada a um território desconhecido (geográfico, no caso de um país, ou pessoal, como quando o narrador trava conhecimento com uma mulher).
É um olhar surpreso (e não necessariamente descontaminado ou neutro), desbravador, curioso. Que Theroux certamente desenvolveu à força de tanto viajar pelo mundo -podendo voltá-lo inclusive a universos que lhe são mais familiares.
Assim, o estranhamento que lhe causa uma colônia de leprosos na África é tão grande como quando se depara com as ações de um inglês excêntrico.
Mais: a sensação de deslocamento que vive na universidade em que lecionou em Cingapura, causada pela amargura de seus colegas, é comparável à que experimenta em Medford (próxima a Boston), sua cidade natal, à qual retorna depois de anos de ausência, e onde entra em contato com um bando de adolescentes que só pensam em fumar e beber e nunca ouviram falar no autor, para sua surpresa.
É isso o que define um escritor: a inadequação que o leva ao distanciamento necessário a quem se pretende um observador do mundo. Como se o exílio, geográfico ou emocional, fosse fundamental para a profissão.
É o deslocamento com relação a sua própria pessoa, no entanto, o ápice dessa sensação que permeia o romance. Ele acontece, no livro, em momentos em que Theroux esconde sua verdadeira identidade.
O primeiro é quando o autor conhece uma moça que não parece se interessar por sua pessoa, mas se revela fã incondicional de Paul Theroux, que nem desconfia ser ele. O segundo é quando a psicanalista que procura logo após separar-se de sua mulher lhe recomenda os livros do "tal escritor", que, segundo ela, tem uma visão bem interessante sobre o casamento.
A contrapartida para essa sensação de inadequação é a busca de um espelho ou de alguém em quem projetar um destino, um futuro imaginário. Essa ânsia leva o narrador a buscar o ex-marido de uma amante que teve. Theroux procura na vida do outro a resposta para o que teria sido a sua própria caso tivesse casado com a amante.
Em outras palavras, o autor acaba se inventando como personagem. Vale citar que "Minha Outra Vida" é uma espécie de resposta ao romance "My Secret Story" (Minha História Secreta), do qual se dizia conter fatos autobiográficos. O autor, então, decidiu escrever um livro supostamente autobiográfico em que misturaria ficção e realidade.
O resultado é uma narrativa tão envolvente que a questão da veracidade dos eventos fica irrelevante -trata-se de boa literatura e basta.
Para Theroux, a verdade está mais na invenção do que na comprovação dos fatos. Como ele próprio resume no romance, "o homem é ficção, a máscara é real".
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Livro: Minha Outra Vida Autor: Paul Theroux Lançamento: Record Quanto: R$ 39 (486 págs.)





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