São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

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Memórias da violência 2

ALBERTO DINES

Colunista da Folha
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O AI-5 estava previsto para extinguir-se à meia-noite do dia 31 de dezembro de 1978, dez anos e 18 dias depois de promulgado. E assim foi. A lei arbitrária revogou-se, auto-extinta. Mas o emaranhado complementar e o lastro psicológico continuaram armados por mais uma década, teoricamente até a aprovação da Constituição de 88. Na realidade, foram além dela.
Esse foi o artifício da "distensão lenta, gradual e segura" imaginado criativamente pela dupla GG (Geisel-Golbery). Ao contrário do marechal Castelo Branco, que pretendia em 1964 uma intervenção incisiva e rápida, tipo cirúrgica, seus herdeiros e discípulos, de volta ao poder em 1974, preconizavam uma terapia relaxadora em doses homeopáticas. Para evitar excessos e abcessos tanto na extrema-esquerda quanto na extrema-direita.
O iluminista Montesquieu, no século 18, falava no espírito das leis sobrepondo-se à letra das leis. Dois séculos e meio depois talvez fosse o caso de indagar se o espírito do despotismo não sobrevive além do déspota e de seus intrincados códigos e manuais.
Antonio Delfim Netto, ex- czar da economia dos anos de chumbo, afirmou há dias que não se arrepende do voto em favor do AI-5, naquela fatídica sexta-feira 13, durante a reunião do Conselho de Segurança Nacional: "...Nas condições de informação que tinha naquela hora, eu repetiria meu voto. Ninguém poderia imaginar a barbaridade da tortura".
Na lógica do deputado malufista, um AI-5 sem tortura, soft, é perfeitamente aceitável. Valem execuções sumárias, confinamentos em solitárias, "acidentes" como aquele que assassinou Zuzu Angel. Vale a censura, a cassação de mandatos, a "aposentadoria" de magistrados e acadêmicos. Aos delicados ouvidos de Delfim Netto incomodam os berros. Homem sensível.
Mas em 1968 vangloriava- se sempre, diante da corte que o rodeava todas as noites num dos mais chiques restaurantes de Copacabana, de fazer desaparecer os dossiês mais chatos e volumosos que lhe chegavam às mãos para despacho. Tortura, não. Tirania, sim.
Ao optar pela distensão no lugar da abertura, a dupla GG fez uma opção semântica e tática, mas -talvez involuntariamente- perenizadora. A longa transição permitiu um processo de enraizamento do arbítrio com sutis e ardilosos encadeamentos. Uma bem-intencionada armadilha por meio da qual se processaram mutações cosméticas. Parte da mentalidade arbitrária permanece intacta. E não apenas no Poder Executivo, mas em todos os poderes, formais e informais.
No início dos anos 80, quando o aparelho repressor já estava recolhido, processou-se uma verdadeira "razzia" nas redações da grande imprensa. Quase uma geração inteira, treinada na resistência, foi condenada ao ostracismo. Da noite para o dia, considerada velha e superada. O modelo "The New York Times" foi substituído rapidamente pelo "USA Today". A essência do jornalismo e a constituição orgânica dos jornais foram rapidamente recicladas para os novos tempos. Sem transferência ou continuidade.
Saíram censores e entraram marqueteiros. "Exit" tesoura, "enter" truque. Para apagar a colaboração da autocensura, a arrogância.
Graças ao gradualismo e às baixas dosagens do soro democrático, atenuou-se o corte transformador no sistema institucional-mental. Resumiu-se à esfera da imprensa (que deveria vigiá-lo) sob o pretexto de "modernização". Com danos irreparáveis na criação de uma consciência verdadeiramente liberal. Talvez por isso não chegamos à catarse, à purgação. Como está dito na cabala, é preciso partir os vasos para que haja reparação. O jeitinho e os jeitosos permitiram uma acomodação que não nos purificou da truculência e da ferocidade.
Há uma ditadura enrustida, à esquerda, no centro e à direita. No alto clero e no baixo clero, nos submundos e no olimpo do saber.
Vivi, há coisa de um mês, uma caricatura de AI- 5, a propósito mesmo do AI-5. Não é um caso de estudo, mas grosseira piada, registro-a apenas para que a ridícula encenação autoritária possa servir de vacina para erradicar eventuais resquícios plúmbeos escondidos em almas e desvãos.
O departamento de história da USP, por iniciativa de uma professora de história contemporânea, autoridade na questão da imprensa no regime militar, organizou uma série de painéis para relembrar os 30 anos do AI-5. Convidado para participar da sessão de encerramento sobre censura, junto com mais três jornalistas, pouco antes fui informado de que o evento havia sido transferido do anfiteatro do departamento de história para outras dependências, fora do campus, no prédio da rua Maria Antonia.
Os jovens e os não-paulistas talvez ignorem: o local foi uma trincheira da resistência democrática justamente nos meses que precederam o AI-5. Fiz a leitura positiva da troca, a organizadora conduziu-se com discrição e nobreza, só horas depois soube das suas aflições, obrigada pela direção do departamento de história a transferir o evento. Razão: meu nome fora vetado, estou proibido de pisar no departamento. Há três anos acusei uma professora, czarina da área de estudos inquisitoriais, e uma orientanda de terem utilizado parte substancial das minhas pesquisas sobre a ação do Santo Ofício no Rio de Janeiro sem fazer as referências que uma utilização daquele porte exigiria. Acusação, réplicas e tréplica foram publicadas no "Jornal do Brasil" e o assunto foi encerrado.
Agora veio o troco. E o tranco corporativo. Justamente na ocasião em que lembramos a temporada de arbítrio. Os respeitáveis mestres da USP que apoiaram a feroz decisão (não foram todos) igualaram-se aos desatinados alunos da UNI-Rio que agrediram a professora Ruth Cardoso, impedindo-a de falar durante uma cerimônia naquela instituição.
Existem várias formas de exorcizar a violência, as mais conhecidas são o divã do analista, o confessionário e os julgamentos públicos. O processo recém-iniciado de extradição para a Espanha do ditador Augusto Pinochet é exemplar. Como o foi o sequestro do monstro nazista Adolf Eichman pelos agentes israelenses e o seu julgamento em Jerusalém. Rever o Mal não é banalizá-lo, ao contrário do que alegou na ocasião Hannah Arendt. Foi o que fez "Veja" no último fim-de-semana lembrando a tortura e os velhos tempos de bom jornalismo.
Exorcismo eficaz é a memória da violência. Lembrar é um dos atributos essenciais da condição humana. Só ele produz o horror à violência, a todas as violências. (Continua)



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