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Memórias da violência 2
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
˛
O AI-5 estava previsto para
extinguir-se à meia-noite do
dia 31 de dezembro de 1978, dez
anos e 18 dias depois de promulgado. E assim foi. A lei arbitrária revogou-se, auto-extinta.
Mas o emaranhado complementar e o lastro psicológico
continuaram armados por mais
uma década, teoricamente até a
aprovação da Constituição de
88. Na realidade, foram além
dela.
Esse foi o artifício da "distensão lenta, gradual e segura"
imaginado criativamente pela
dupla GG (Geisel-Golbery). Ao
contrário do marechal Castelo
Branco, que pretendia em 1964
uma intervenção incisiva e rápida, tipo cirúrgica, seus herdeiros e discípulos, de volta ao poder em 1974, preconizavam
uma terapia relaxadora em doses homeopáticas. Para evitar
excessos e abcessos tanto na extrema-esquerda quanto na extrema-direita.
O iluminista Montesquieu, no
século 18, falava no espírito das
leis sobrepondo-se à letra das
leis. Dois séculos e meio depois
talvez fosse o caso de indagar se
o espírito do despotismo não sobrevive além do déspota e de
seus intrincados códigos e manuais.
Antonio Delfim Netto, ex-
czar da economia dos anos de
chumbo, afirmou há dias que
não se arrepende do voto em favor do AI-5, naquela fatídica
sexta-feira 13, durante a reunião do Conselho de Segurança
Nacional: "...Nas condições de
informação que tinha naquela
hora, eu repetiria meu voto.
Ninguém poderia imaginar a
barbaridade da tortura".
Na lógica do deputado malufista, um AI-5 sem tortura, soft,
é perfeitamente aceitável. Valem execuções sumárias, confinamentos em solitárias, "acidentes" como aquele que assassinou Zuzu Angel. Vale a censura, a cassação de mandatos, a
"aposentadoria" de magistrados e acadêmicos. Aos delicados
ouvidos de Delfim Netto incomodam os berros. Homem sensível.
Mas em 1968 vangloriava- se
sempre, diante da corte que o
rodeava todas as noites num
dos mais chiques restaurantes
de Copacabana, de fazer desaparecer os dossiês mais chatos e
volumosos que lhe chegavam às
mãos para despacho. Tortura,
não. Tirania, sim.
Ao optar pela distensão no lugar da abertura, a dupla GG fez
uma opção semântica e tática,
mas -talvez involuntariamente- perenizadora. A longa
transição permitiu um processo
de enraizamento do arbítrio
com sutis e ardilosos encadeamentos. Uma bem-intencionada armadilha por meio da qual
se processaram mutações cosméticas. Parte da mentalidade
arbitrária permanece intacta. E
não apenas no Poder Executivo,
mas em todos os poderes, formais e informais.
No início dos anos 80, quando
o aparelho repressor já estava
recolhido, processou-se uma
verdadeira "razzia" nas redações da grande imprensa. Quase
uma geração inteira, treinada
na resistência, foi condenada
ao ostracismo. Da noite para o
dia, considerada velha e superada. O modelo "The New York
Times" foi substituído rapidamente pelo "USA Today". A essência do jornalismo e a constituição orgânica dos jornais foram rapidamente recicladas
para os novos tempos. Sem
transferência ou continuidade.
Saíram censores e entraram
marqueteiros. "Exit" tesoura,
"enter" truque. Para apagar a
colaboração da autocensura, a
arrogância.
Graças ao gradualismo e às
baixas dosagens do soro democrático, atenuou-se o corte
transformador no sistema institucional-mental. Resumiu-se à
esfera da imprensa (que deveria
vigiá-lo) sob o pretexto de "modernização". Com danos irreparáveis na criação de uma
consciência verdadeiramente
liberal. Talvez por isso não chegamos à catarse, à purgação.
Como está dito na cabala, é preciso partir os vasos para que haja reparação. O jeitinho e os jeitosos permitiram uma acomodação que não nos purificou da
truculência e da ferocidade.
Há uma ditadura enrustida, à
esquerda, no centro e à direita.
No alto clero e no baixo clero,
nos submundos e no olimpo do
saber.
Vivi, há coisa de um mês, uma
caricatura de AI- 5, a propósito
mesmo do AI-5. Não é um caso
de estudo, mas grosseira piada,
registro-a apenas para que a ridícula encenação autoritária
possa servir de vacina para erradicar eventuais resquícios
plúmbeos escondidos em almas
e desvãos.
O departamento de história
da USP, por iniciativa de uma
professora de história contemporânea, autoridade na questão da imprensa no regime militar, organizou uma série de
painéis para relembrar os 30
anos do AI-5. Convidado para
participar da sessão de encerramento sobre censura, junto com
mais três jornalistas, pouco antes fui informado de que o evento havia sido transferido do anfiteatro do departamento de
história para outras dependências, fora do campus, no prédio
da rua Maria Antonia.
Os jovens e os não-paulistas
talvez ignorem: o local foi uma
trincheira da resistência democrática justamente nos meses
que precederam o AI-5. Fiz a
leitura positiva da troca, a organizadora conduziu-se com
discrição e nobreza, só horas depois soube das suas aflições,
obrigada pela direção do departamento de história a transferir
o evento. Razão: meu nome fora
vetado, estou proibido de pisar
no departamento. Há três anos
acusei uma professora, czarina
da área de estudos inquisitoriais, e uma orientanda de terem utilizado parte substancial
das minhas pesquisas sobre a
ação do Santo Ofício no Rio de
Janeiro sem fazer as referências
que uma utilização daquele
porte exigiria. Acusação, réplicas e tréplica foram publicadas
no "Jornal do Brasil" e o assunto foi encerrado.
Agora veio o troco. E o tranco
corporativo. Justamente na
ocasião em que lembramos a
temporada de arbítrio. Os respeitáveis mestres da USP que
apoiaram a feroz decisão (não
foram todos) igualaram-se aos
desatinados alunos da UNI-Rio
que agrediram a professora
Ruth Cardoso, impedindo-a de
falar durante uma cerimônia
naquela instituição.
Existem várias formas de
exorcizar a violência, as mais
conhecidas são o divã do analista, o confessionário e os julgamentos públicos. O processo recém-iniciado de extradição para a Espanha do ditador Augusto Pinochet é exemplar. Como o
foi o sequestro do monstro nazista Adolf Eichman pelos agentes israelenses e o seu julgamento em Jerusalém. Rever o Mal
não é banalizá-lo, ao contrário
do que alegou na ocasião Hannah Arendt. Foi o que fez "Veja" no último fim-de-semana
lembrando a tortura e os velhos
tempos de bom jornalismo.
Exorcismo eficaz é a memória
da violência. Lembrar é um dos
atributos essenciais da condição humana. Só ele produz o
horror à violência, a todas as
violências. (Continua)
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