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OS DEMÔNIOS DE IAN MCEWAN
"Eu era como uma bomba explodindo"
da Reportagem Local
Leia a seguir a continuação da
entrevista com o escritor Ian McEwan.
(CASSIANO ELEK MACHADO)
Folha - "Primeiro Amor, Último
Sacramento" faz lembrar três nomes: Sigmund Freud (pai da psicologia), pelo modo como o sr. trata
o desejo, Alfred Hitchcock (o cineasta), pelo modo como o sr. trata a sensação de culpa, e Kafka, pelo absurdo em que alguns personagens do livro se vêem metidos. Em
sua opinião, quanto deles há em
seu livro e em sua obra, de modo
geral?
Ian McEwan - Hitchcock nunca
significou muito para mim. Kafka
e Freud certamente sim. Estava
muito imerso nos textos de Freud
quando escrevi meus primeiros
contos. "Sobre a Psicopatologia da
Vida Cotidiana" (de Freud) foi o
primeiro livro que realmente li, e
estava lendo-o quando fiz "Primeiro Amor...". Logo em seguida, li
outros três livros de Freud. O que
penso que peguei de mais importante, não só de Freud, mas dos outros dois também, foi o poder da
idéia do inconsciente. Ao mesmo
tempo que lia Freud, também lia
Kafka. Fiquei particularmente impressionado pelos contos de Kafka, mais do que pelos seus romances. O que realmente fez uma marca em mim é que existe um espírito
nessas ficções que não pertence a
nenhum lugar geográfico e a nenhum tempo, historicamente. Parecem vir diretamente do inconsciente. Seus contos poderiam ser
sobre brasileiros ou ingleses, contemporâneos ou do século 18. Kafka e Freud, juntos, representaram
uma liberação para mim. A possibilidade de escrever diretamente
de uma parte profunda e escura de
mim.
Folha - E por que as crianças são
sempre tão sórdidas em seus primeiros contos?
McEwan - Eu não pretendia isso.
Eu adoro crianças. Penso que era
algo relativo a mim mesmo. Como
uma rejeição da minha infância e
também uma adoção romântica da
idéia freudiana de que as crianças
não são inocentes. Eu tenho que
acrescentar que hoje já não sou influenciado por Freud.
Folha - Seu primeiro amor foi seu
último rito (em inglês, o conto que
dá nome ao livro se chama "First
Love, Last Rites")?
McEwan - Sim (risos), de certa
forma. Essa foi a última história
que escrevi para o livro. Foi feita
em Londres, em março de 1974.
Folha - E por que a sexualidade
aparece de modo tão conturbado
nesses dois primeiros livros?
McEwan - Eu realmente não sei.
Eu era como uma bomba explodindo. Eu era tão quieto, tão reprimido como adolescente. De repente, eu estava escrevendo e só estranhamento e loucura emergiam no
papel. Isso não refletia exatamente
algo que estivesse acontecendo em
minha vida pessoal. Mas penso
que havia alguma relação com todos os complexos que tive em minha vida privada, em meu passado,
em minha infância, em meus sonhos, em meus pensamentos.
Folha - Quais as maiores diferenças que o sr. enxerga entre seus escritos de 30 anos atrás e os de hoje?
McEwan - Penso que a maior diferença é que esses primeiros contos são muito centrados em mim
mesmo. A mente do narrador está
sempre envolvida em um ambiente claustrofóbico. Depois, fiquei
mais interessado no que sustenta o
mundo moderno. O que sustenta a
modernidade. O que somos agora.
Estou interessado em história, em
dramas de vidas públicas e privadas. Em como homens e mulheres
se relacionam. Em tempo, e no que
ele faz com as pessoas. Em outras
palavras, não estou mais tão interessado na intensidade de um
mundo pessoal claustrofóbico.
Folha - "Amsterdam" parece tão
diferente desses primeiros contos.
O sr. enxerga alguma relação?
McEwan - "Amsterdam" é completamente diferente dos outros. É
muito mais sério, apesar de ser cômico. É satírico, mas é ao mesmo
tempo uma espécie de fábula moral. Eu diria que não existem conexões entre ele e meus primeiros
contos. "Amsterdam" fala muito
sobre sucesso. Sobre como pessoas
bem-sucedidas podem ficar tão
pomposas, vãs.
Folha - Seu compatriota Martin
Amis disse à Folha no final do mês
passado que o fracasso é muito
mais interessante para um escritor
do que o sucesso. Que o sucesso é
"vulgar e invariável" e só combina
com "romances de aeroporto". O
sr. diz que escreveu sobre o sucesso. O que pensa disso?
McEwan - Bem, Martin, que é um
amigo muito próximo, escreveu
um livro chamado "Sucesso".
Quando falei agora em sucesso,
também estava falando em um
background de fracasso, que é um
excelente tema. Mas penso que
certos tipos de sucesso podem ser
muito interessantes porque podem ser corruptivos.
Folha - Falando em sucesso, gostaria que o sr. comentasse o que
representou a vitória do Booker
Prize, no final de outubro deste
ano, tendo em vista que o sr. declarou que se sentia como se estivesse sonhando.
McEwan - A noite em que é anunciado o prêmio é muito intensa. É
difícil de descrever. Depois de um
jantar e de várias taças de vinho
você senta em uma mesa e o apresentador se posiciona no palco.
Você sabe que tem uma em seis
chances (número de concorrentes
por ano). Quando foi anunciada
minha vitória, enxerguei dois universos paralelos: um, no qual venci, e outro, no qual perdi. Senti-me
como se estivesse ainda sentado na
mesa, assistindo outro, que era eu
mesmo, ganhar o prêmio. Foi estranho, pois sabia exatamente como era perder esse prêmio. Já havia perdido duas vezes. Foi como
uma experiência "extracorporal".
Na realidade, o significado mais
forte do prêmio não tem relação
com isso tudo. É apenas o de que
você vende mais livros.
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