São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OS DEMÔNIOS DE IAN MCEWAN
"Eu era como uma bomba explodindo"

da Reportagem Local

Leia a seguir a continuação da entrevista com o escritor Ian McEwan. (CASSIANO ELEK MACHADO)
Folha - "Primeiro Amor, Último Sacramento" faz lembrar três nomes: Sigmund Freud (pai da psicologia), pelo modo como o sr. trata o desejo, Alfred Hitchcock (o cineasta), pelo modo como o sr. trata a sensação de culpa, e Kafka, pelo absurdo em que alguns personagens do livro se vêem metidos. Em sua opinião, quanto deles há em seu livro e em sua obra, de modo geral?
Ian McEwan -
Hitchcock nunca significou muito para mim. Kafka e Freud certamente sim. Estava muito imerso nos textos de Freud quando escrevi meus primeiros contos. "Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana" (de Freud) foi o primeiro livro que realmente li, e estava lendo-o quando fiz "Primeiro Amor...". Logo em seguida, li outros três livros de Freud. O que penso que peguei de mais importante, não só de Freud, mas dos outros dois também, foi o poder da idéia do inconsciente. Ao mesmo tempo que lia Freud, também lia Kafka. Fiquei particularmente impressionado pelos contos de Kafka, mais do que pelos seus romances. O que realmente fez uma marca em mim é que existe um espírito nessas ficções que não pertence a nenhum lugar geográfico e a nenhum tempo, historicamente. Parecem vir diretamente do inconsciente. Seus contos poderiam ser sobre brasileiros ou ingleses, contemporâneos ou do século 18. Kafka e Freud, juntos, representaram uma liberação para mim. A possibilidade de escrever diretamente de uma parte profunda e escura de mim.
Folha - E por que as crianças são sempre tão sórdidas em seus primeiros contos?
McEwan -
Eu não pretendia isso. Eu adoro crianças. Penso que era algo relativo a mim mesmo. Como uma rejeição da minha infância e também uma adoção romântica da idéia freudiana de que as crianças não são inocentes. Eu tenho que acrescentar que hoje já não sou influenciado por Freud.
Folha - Seu primeiro amor foi seu último rito (em inglês, o conto que dá nome ao livro se chama "First Love, Last Rites")?
McEwan -
Sim (risos), de certa forma. Essa foi a última história que escrevi para o livro. Foi feita em Londres, em março de 1974.
Folha - E por que a sexualidade aparece de modo tão conturbado nesses dois primeiros livros?
McEwan -
Eu realmente não sei. Eu era como uma bomba explodindo. Eu era tão quieto, tão reprimido como adolescente. De repente, eu estava escrevendo e só estranhamento e loucura emergiam no papel. Isso não refletia exatamente algo que estivesse acontecendo em minha vida pessoal. Mas penso que havia alguma relação com todos os complexos que tive em minha vida privada, em meu passado, em minha infância, em meus sonhos, em meus pensamentos.
Folha - Quais as maiores diferenças que o sr. enxerga entre seus escritos de 30 anos atrás e os de hoje?
McEwan -
Penso que a maior diferença é que esses primeiros contos são muito centrados em mim mesmo. A mente do narrador está sempre envolvida em um ambiente claustrofóbico. Depois, fiquei mais interessado no que sustenta o mundo moderno. O que sustenta a modernidade. O que somos agora. Estou interessado em história, em dramas de vidas públicas e privadas. Em como homens e mulheres se relacionam. Em tempo, e no que ele faz com as pessoas. Em outras palavras, não estou mais tão interessado na intensidade de um mundo pessoal claustrofóbico.
Folha - "Amsterdam" parece tão diferente desses primeiros contos. O sr. enxerga alguma relação?
McEwan -
"Amsterdam" é completamente diferente dos outros. É muito mais sério, apesar de ser cômico. É satírico, mas é ao mesmo tempo uma espécie de fábula moral. Eu diria que não existem conexões entre ele e meus primeiros contos. "Amsterdam" fala muito sobre sucesso. Sobre como pessoas bem-sucedidas podem ficar tão pomposas, vãs.
Folha - Seu compatriota Martin Amis disse à Folha no final do mês passado que o fracasso é muito mais interessante para um escritor do que o sucesso. Que o sucesso é "vulgar e invariável" e só combina com "romances de aeroporto". O sr. diz que escreveu sobre o sucesso. O que pensa disso?
McEwan - Bem, Martin, que é um amigo muito próximo, escreveu um livro chamado "Sucesso". Quando falei agora em sucesso, também estava falando em um background de fracasso, que é um excelente tema. Mas penso que certos tipos de sucesso podem ser muito interessantes porque podem ser corruptivos.
Folha - Falando em sucesso, gostaria que o sr. comentasse o que representou a vitória do Booker Prize, no final de outubro deste ano, tendo em vista que o sr. declarou que se sentia como se estivesse sonhando.
McEwan -
A noite em que é anunciado o prêmio é muito intensa. É difícil de descrever. Depois de um jantar e de várias taças de vinho você senta em uma mesa e o apresentador se posiciona no palco. Você sabe que tem uma em seis chances (número de concorrentes por ano). Quando foi anunciada minha vitória, enxerguei dois universos paralelos: um, no qual venci, e outro, no qual perdi. Senti-me como se estivesse ainda sentado na mesa, assistindo outro, que era eu mesmo, ganhar o prêmio. Foi estranho, pois sabia exatamente como era perder esse prêmio. Já havia perdido duas vezes. Foi como uma experiência "extracorporal".
Na realidade, o significado mais forte do prêmio não tem relação com isso tudo. É apenas o de que você vende mais livros.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.