São Paulo, sábado, 12 de dezembro de 1998

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...McEwan responde

da Reportagem Local

Leia a seguir o primeiro texto inédito de Ian McEwan depois de ganhar em outubro o Booker Prize, prêmio literário mais prestigiado da Europa depois do Nobel.

IAN MCEWAN
especial para a Folha

Não há o que não possa ser contado, porque a engenhosidade humana e a força da metáfora não têm limite.
Preservar o incompreensível compete às religiões; o que compete à literatura e também, de outro modo, à ciência, é iluminar. Chegar ao entendimento de um evento é chegar à verdade, e a verdade não trai nada. O escritor que é verdadeiro consigo mesmo não trai nada.
Ninguém duvida que as palavras são símbolos, mas o entendimento transmitido por elas tem a própria imediatice da percepção, porque a linguagem é um modo de transmitir o pensamento de uma mente a outra. Conhecimento adiado é conhecimento perdido, porque a verdade existe num presente perpétuo.
A arte construiu seu templo na encruzilhada entre o imaginário e o real. Não se pode ser testemunha de um evento sem alterá-lo. É essa a glória da literatura, como da mecânica quântica. A verdade, no entanto, não se altera; ela sim pode nos transformar. Exige-se que o artista seja testemunha de si. Resistir altivamente à sedução da narrativa é uma das tragédias da literatura modernista.
Para escapar da beleza só é preciso escrever mal, o que é muito fácil.
Não existe literatura sem artesanato, só divagação grosseira. Escreva-se, sim, isso tudo com palavras e exultando em nossos talentos!
Como escrever? Lembrando o conselho de Joyce: silêncio, exílio e astúcia.
Não há conhecimento sem pensamento. Não se deixe deslumbrar pelos mistérios. Não há por que idolatrá-los. Melhor resolvê-los! O artista não respeita limites da representação. Abaixo os escrúpulos! Narrativa e testemunho se fundem no ato da imaginação como ar que entra nos pulmões. Mas história e leitura não deveriam jamais se confundir: alguma coisa aconteceu. E nós sabemos!
Os limites da metáfora são os limites do mundo. Toda primeira impressão torna-se imediatamente uma memória; prova-se aí o gosto amargo da mortalidade e, portanto, a necessidade da arte.
Estar presente à própria vida, habitá-la por completo no presente: são momentos raros e preciosos, dádivas da inspiração e do amor. O amor, na verdade por uma mulher, um homem, uma criança, é o que planta a experiência no real. Descrever o amor, sem sentimentalismo nem cinismo, é a tarefa mais difícil da literatura. Preservar a literalidade do evento? Pense em Conrad. Basta enxergar! Fazer o leitor enxergar! Um dia, quem sabe, a psicologia será uma ciência real, e poderemos ver as origens evolutivas da ética.
Há uma distância a ser preservada entre narrador e autor, a fonte da ironia. Poesia, como se diz, é o que se perde em tradução. Mas não acredite nisso. Nossa tendência é exagerar as diferenças. Nossos cérebros são biologicamente similares, afinal. O tradutor é um mágico desmontando Babel. Não se desespere, Nestrovski. Não vá embora!
˛


Tradução de Arthur Nestrovski



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