São Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 2005

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"24 Horas" tira terrorismo do esquecimento nos EUA

FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"

Será que alguém se lembra da guerra contra o terrorismo? No último domingo, ela foi arremessada de volta à TV como uma granada de mão com a quarta temporada de "24 Horas", a série que relata as peripécias de Jack Bauer, o incansável agente de inteligência interpretado por Kiefer Sutherland (no Brasil a Fox e a Globo exibem a terceira temporada).
Não divulgarei segredos da trama. Mas basta sintonizar e você estará de volta, ainda que não com nostalgia, à batalha feroz que se seguiu ao 11 de Setembro e que está quase esquecida, enquanto estamos aprisionados àquela seqüência supostamente conectada à trama, a guerra contra Saddam.
O programa não acata a idéia do presidente Bush de que o Iraque constitui "a frente central na guerra contra o terrorismo". Em "24 Horas", o inimigo fica no território dos EUA. "Não pensávamos na guerra do Iraque quando desenvolvemos a história", disse o co-criador Joel Surnow.
Nos EUA da série, como no país real, os burocratas do governo estão mais ocupados brigando uns com os outros do que combatendo a Al Qaeda. Os trens estão desprotegidos, e o mesmo se aplica à internet. O secretário da Defesa precisa enfrentar terroristas e um filho pacifista e tagarela que, na opinião dele, sucumbiu "à lógica de sexta série de Michael Moore".
À sua maneira, "24 Horas" é tão provocante quanto um manifesto de Moore. Demonstra argumentos morais sobre o uso de tortura por americanos encarregados de interrogar terroristas. Os resultados são controversos nas quatro horas da nova temporada a que assisti, e há um sinal de que os atos criminosos em Guantánamo podem ter assustadoras repercussões no OC (condado de Orange).
O Conselho de Relações Islâmico-Americanas já começou a protestar contra a maneira que os muçulmanos são retratados na nova temporada. Ainda que Surnow afirme que episódios posteriores incluirão personagens muçulmanos positivos, ele não se desculpa por se concentrar nos vilões (e em uma mulher especialmente cruel). Ele lamenta ter "moderado a linguagem" duas temporadas atrás ao usar terroristas genéricos de proveniência indistinta e sotaques indefiníveis. "Neste ano, encaramos a briga", diz. "É isso que tememos -o terrorismo islâmico. É contra isso que vamos combater."
Richard Clarke, o diretor de operações antiterroristas que ajudou a comandar essa batalha no passado, ainda não está acompanhando "24 Horas". Mas ofereceu certa concorrência na semana de estréia da série. A capa da edição de janeiro/fevereiro da "Atlantic Monthly" divulga um conto perturbador escrito por ele sobre a guerra contra o terrorismo, que em sua opinião foi sabotada, se não perdida, devido a deficiências de comando, complacência e desperdício de recursos no Iraque.
Intitulado "Ten Years Later" (Dez Anos Mais Tarde), toma a forma de uma palestra no décimo aniversário dos atentados de 11 de Setembro. O palestrante é Roger McBride, da Escola Kennedy de Administração Pública, parte da Universidade Harvard. Ele rememora a década, em 2011, enquanto constata que nada foi prevenido pela invasão do Iraque.
A palestra fictícia vem acompanhada de notas de rodapé factuais e por informações sérias e detalhadas quanto às atuais deficiências de segurança. O leitor descobre que Clarke não está fantasiando ociosamente quando especula que o próximo ataque ao poderio econômico norte-americano provavelmente não envolveria jatos de passageiros e arranha-céus no distrito financeiro, mas mochilas, trailers e devastação em um parque temático da Flórida ou num cassino de Las Vegas. Mas por que Clarke optaria pela ficção como veículo para seu cenário sombrio e estritamente baseado em fatos?
"Tanto no governo Clinton quanto no governo Bush, eu só conseguia atrair de verdade a atenção dos funcionários importantes quando promovia jogos de guerra", disse ele em entrevista. "Isso funcionava melhor do que qualquer estudo teórico que eu pudesse escrever."
Poucos críticos da luta norte-americana contra o terrorismo, tanto antes quanto depois do 11 de Setembro, tiveram mais destaque público que Clarke, que prestou depoimentos dramáticos e amplamente divulgados à comissão do 11 de Setembro e publicou "Contra Todos os Inimigos" (no Brasil foi lançado pela Francis).
Mas ele continua a sentir, e não sem motivo, que a mensagem que tenta divulgar não encontrou repercussão. "No 11 de Setembro, minha equipe estava me consolando", conta. "Diziam que eu não conseguira deter o ataque, mas pelo menos conseguiria que todas as providências que recomendei fossem adotadas. Não havia como duvidar."
Sua nova tentativa de se fazer ouvir também virá em forma de ficção -um romance que tem a segurança nacional e a política externa por tema e deve sair em outubro. Ainda que o trabalho talvez não ofereça cenas de sexo -"é uma das coisas que estou decidindo"-, Clarke vê a ficção popular, capaz de vender bem mais exemplares que os trabalhos de não-ficção, como forma de atingir uma audiência ainda maior.
Ele também contribuiu com algumas idéias para o roteiro de "Dirty War" [Guerra Suja], um docudrama da HBO e da BBC que, ao estilo de "24 Horas", retrata o complacente governo britânico como ridiculamente despreparado para impedir ou reagir à detonação de uma "bomba suja" (bomba convencional com material radiativo) em Londres.
"A cultura pop muitas vezes está à frente da mídia noticiosa quanto a esses temas", diz. E à frente do governo, igualmente. "Condoleezza Rice, em 2002, declarou, para sua vergonha, que ninguém imaginava que essas pessoas seqüestrariam aviões e os usariam para derrubar o World Trade Center."
Clarke fala que os amigos que leram cópias de seu conto para a "Atlantic Monthly" lhe enviaram e-mails comentando coisas como "Viu? Já está acontecendo". Mas, na opinião dele, não vimos nada ainda. "Madri [em 11 de março] poderia se repetir em qualquer de nossas grandes cidades hoje", diz.
Todos admitem que 2004 foi o ano em que o falso noticiário se tornou mais confiável do que as notícias reais para muitos espectadores. Com o início de 2005, precisamos enfrentar a possibilidade de que um herói de ação fictício, na TV, esteja mais envolvido com a guerra contra o terrorismo do que as pessoas encarregadas desse trabalho em Washington.


Tradução Paulo Migliacci

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