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"24 Horas" tira terrorismo do esquecimento nos EUA
FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"
Será que alguém se lembra da
guerra contra o terrorismo? No
último domingo, ela foi arremessada de volta à TV como uma granada de mão com a quarta temporada de "24 Horas", a série que
relata as peripécias de Jack Bauer,
o incansável agente de inteligência interpretado por Kiefer Sutherland (no Brasil a Fox e a Globo exibem a terceira temporada).
Não divulgarei segredos da trama. Mas basta sintonizar e você
estará de volta, ainda que não
com nostalgia, à batalha feroz que
se seguiu ao 11 de Setembro e que
está quase esquecida, enquanto
estamos aprisionados àquela seqüência supostamente conectada
à trama, a guerra contra Saddam.
O programa não acata a idéia do
presidente Bush de que o Iraque
constitui "a frente central na guerra contra o terrorismo". Em "24
Horas", o inimigo fica no território dos EUA. "Não pensávamos
na guerra do Iraque quando desenvolvemos a história", disse o
co-criador Joel Surnow.
Nos EUA da série, como no país
real, os burocratas do governo estão mais ocupados brigando uns
com os outros do que combatendo a Al Qaeda. Os trens estão desprotegidos, e o mesmo se aplica à
internet. O secretário da Defesa
precisa enfrentar terroristas e um
filho pacifista e tagarela que, na
opinião dele, sucumbiu "à lógica
de sexta série de Michael Moore".
À sua maneira, "24 Horas" é tão
provocante quanto um manifesto
de Moore. Demonstra argumentos morais sobre o uso de tortura
por americanos encarregados de
interrogar terroristas. Os resultados são controversos nas quatro
horas da nova temporada a que
assisti, e há um sinal de que os
atos criminosos em Guantánamo
podem ter assustadoras repercussões no OC (condado de Orange).
O Conselho de Relações Islâmico-Americanas já começou a protestar contra a maneira que os
muçulmanos são retratados na
nova temporada. Ainda que Surnow afirme que episódios posteriores incluirão personagens muçulmanos positivos, ele não se
desculpa por se concentrar nos vilões (e em uma mulher especialmente cruel). Ele lamenta ter
"moderado a linguagem" duas
temporadas atrás ao usar terroristas genéricos de proveniência indistinta e sotaques indefiníveis.
"Neste ano, encaramos a briga",
diz. "É isso que tememos -o terrorismo islâmico. É contra isso
que vamos combater."
Richard Clarke, o diretor de
operações antiterroristas que ajudou a comandar essa batalha no
passado, ainda não está acompanhando "24 Horas". Mas ofereceu
certa concorrência na semana de
estréia da série. A capa da edição
de janeiro/fevereiro da "Atlantic
Monthly" divulga um conto perturbador escrito por ele sobre a
guerra contra o terrorismo, que
em sua opinião foi sabotada, se
não perdida, devido a deficiências
de comando, complacência e desperdício de recursos no Iraque.
Intitulado "Ten Years Later"
(Dez Anos Mais Tarde), toma a
forma de uma palestra no décimo
aniversário dos atentados de 11 de
Setembro. O palestrante é Roger
McBride, da Escola Kennedy de
Administração Pública, parte da
Universidade Harvard. Ele rememora a década, em 2011, enquanto constata que nada foi prevenido pela invasão do Iraque.
A palestra fictícia vem acompanhada de notas de rodapé factuais
e por informações sérias e detalhadas quanto às atuais deficiências de segurança. O leitor descobre que Clarke não está fantasiando ociosamente quando especula
que o próximo ataque ao poderio
econômico norte-americano provavelmente não envolveria jatos
de passageiros e arranha-céus no
distrito financeiro, mas mochilas,
trailers e devastação em um parque temático da Flórida ou num
cassino de Las Vegas. Mas por que
Clarke optaria pela ficção como
veículo para seu cenário sombrio
e estritamente baseado em fatos?
"Tanto no governo Clinton
quanto no governo Bush, eu só
conseguia atrair de verdade a
atenção dos funcionários importantes quando promovia jogos de
guerra", disse ele em entrevista.
"Isso funcionava melhor do que
qualquer estudo teórico que eu
pudesse escrever."
Poucos críticos da luta norte-americana contra o terrorismo,
tanto antes quanto depois do 11
de Setembro, tiveram mais destaque público que Clarke, que prestou depoimentos dramáticos e
amplamente divulgados à comissão do 11 de Setembro e publicou
"Contra Todos os Inimigos" (no
Brasil foi lançado pela Francis).
Mas ele continua a sentir, e não
sem motivo, que a mensagem que
tenta divulgar não encontrou repercussão. "No 11 de Setembro,
minha equipe estava me consolando", conta. "Diziam que eu
não conseguira deter o ataque,
mas pelo menos conseguiria que
todas as providências que recomendei fossem adotadas. Não havia como duvidar."
Sua nova tentativa de se fazer
ouvir também virá em forma de
ficção -um romance que tem a
segurança nacional e a política externa por tema e deve sair em outubro. Ainda que o trabalho talvez
não ofereça cenas de sexo -"é
uma das coisas que estou decidindo"-, Clarke vê a ficção popular,
capaz de vender bem mais exemplares que os trabalhos de não-ficção, como forma de atingir uma
audiência ainda maior.
Ele também contribuiu com algumas idéias para o roteiro de
"Dirty War" [Guerra Suja], um
docudrama da HBO e da BBC
que, ao estilo de "24 Horas", retrata o complacente governo britânico como ridiculamente despreparado para impedir ou reagir à detonação de uma "bomba suja"
(bomba convencional com material radiativo) em Londres.
"A cultura pop muitas vezes está à frente da mídia noticiosa
quanto a esses temas", diz. E à
frente do governo, igualmente.
"Condoleezza Rice, em 2002, declarou, para sua vergonha, que
ninguém imaginava que essas
pessoas seqüestrariam aviões e os
usariam para derrubar o World
Trade Center."
Clarke fala que os amigos que
leram cópias de seu conto para a
"Atlantic Monthly" lhe enviaram
e-mails comentando coisas como
"Viu? Já está acontecendo". Mas,
na opinião dele, não vimos nada
ainda. "Madri [em 11 de março]
poderia se repetir em qualquer de
nossas grandes cidades hoje", diz.
Todos admitem que 2004 foi o
ano em que o falso noticiário se
tornou mais confiável do que as
notícias reais para muitos espectadores. Com o início de 2005,
precisamos enfrentar a possibilidade de que um herói de ação fictício, na TV, esteja mais envolvido
com a guerra contra o terrorismo
do que as pessoas encarregadas
desse trabalho em Washington.
Tradução Paulo Migliacci
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