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CONTARDO CALLIGARIS
Atirar para matar
Durante a invasão do Iraque, vários jornalistas se integraram a unidades combatentes do corpo expedicionário dos
EUA. Na safra de livros que relatam essas experiências, um se destaca: "Generation Kill" (Geração
Matança), de Evan Wright, que
acompanhou um pelotão do primeiro batalhão de reconhecimento dos marines (First Recon Marines, tropa de elite), desde a entrada no Iraque até a ocupação de
Bagdá.
A unidade em questão era constituída por um destacamento de
"humvees". Alguns eram abertos,
outros blindados; cada um era
equipado com um lançador de
granadas ou uma metralhadora
ou ainda um canhão leve, todos
carregavam quatro ou cinco homens.
Repetidamente, o pelotão teve a
perigosa missão de atravessar
emboscadas urbanas, precipitando-se pelas vielas, pé na tábua, recebendo e devolvendo fogo.
Evan Wright era repórter da
"Rolling Stone", uma publicação
atenta à cultura dos jovens. Não
lhe escapou a similitude entre a
guerra combatida por seu pelotão
e aqueles videogames em que se
trata de correr esquivando do fogo alheio, atirando, destruindo e,
quando der, tentando fazer a diferença entre população civil, cachorros e inimigos.
Nessa tarefa, notou Wright, os
jovens soldados do pelotão eram
eficientes e entusiastas: a batalha
parecia prolongar os passatempos
preferidos de sua adolescência.
As observações de Wright me levaram a ler um clássico da psiquiatria militar americana, "On
Killing, the Psychological Cost of
Learning to Kill in War and Society" (Sobre o Fato de Matar, o
Custo Psicológico de Aprender a
Matar em Guerra e na Sociedade), de Dave Grossman, publicado em 95. Resumo o argumento.
1) Um fato surpreendente: pesquisas efetuadas durante a Segunda Guerra Mundial pelo general S.L.A. Marshall mostram
que, na época, em situação de
combate, apenas 20% dos soldados americanos disparavam sua
arma.
Outras pesquisas (históricas, no
caso) provam que o mesmo vale
para as guerras do passado: poucos disparavam sua arma e, entre
esses, menos ainda tomavam
realmente o inimigo como alvo. A
maioria devia atirar ao lado ou
para cima, como se quisesse só intimidar o adversário, feito um
primata que grita, se agita e bate
no seu próprio peito, esperando
que o outro se assuste e fuja.
Imaginemos que, numa guerra
do século 19, dois pelotões de fuzileiros, cada um com 200 homens
dispostos em fileiras compactas,
encarem-se a 30 metros um do
outro. Pelas armas e pelo ritmo de
tiro da época, se os homens apontassem na direção do inimigo, cada pelotão perderia mais de 50
homens por minuto. Ora, esse tipo
de enfrentamento podia durar
horas, pois as baixas de cada pelotão eram só de um ou dois homens por minuto.
2) Conclusão de Grossman:
existe uma forte e saudável inibição que torna difícil matar o próximo, por inimigo que ele seja e
mesmo quando o combate impõe
a alternativa: ele ou eu. Essa inibição vale para o uso de armas individuais a curta e média distância. Ela não vale para bombardeios aéreos ou de artilharia, em
que o soldado não enxerga seu
adversário, e não vale para o uso
das armas que são servidas por
mais de um combatente, como
certas metralhadoras (nesse caso,
prevalece a vontade de se mostrar
à altura da confiança dos camaradas).
3) Após a Segunda Guerra
Mundial, os EUA e outros países
reagiram à descoberta de Marshall modificando o treinamento
militar. O estande e os alvos tradicionais foram substituídos por silhuetas inimigas que surgem repentinamente e devem ser abatidas em bosques, campos ou ambientes urbanos. Também no
condicionamento mental dos soldados começou-se a insistir fortemente no ato de matar (não apenas de combater) como função específica do soldado (veja, por
exemplo, "Nascido para Matar",
de Stanley Kubrick).
4) Os resultados foram imediatos. Na Guerra da Coréia, a percentagem de soldados que dispararam suas armas em combate
subiu para 50%. Na Guerra do
Vietnã, chegou-se a 95% (pelo livro de Wright, na guerra do Iraque, essa média se manteve ou
melhorou).
Grossman observa que o condicionamento que permite que os
soldados vençam sua inibição
consiste, em grande parte, na repetição infindável de situações
virtuais que transformam o ato
de atirar para matar em automatismo. Ele nota que os videogames
em que se trata de avançar atirando e matando podem fazer
parte (e, às vezes, fazem parte
mesmo) desse condicionamento.
Cuidado: não acredito que a
violência dos jogos (vídeo ou não)
prometa comportamentos violentos. Ninguém se torna assaltante
porque brincou de polícia-ladrão
ou assassino porque chegou até a
última fase de "Doom" ou "Quake". Aliás, é possível pensar o contrário: o jogo permite que se expresse uma violência que, sem isso, explodiria na realidade.
Mas nisto Grossman tem razão:
apertar o gatilho apontando num
semelhante está se tornando mais
fácil. A guerra, hoje, tem um custo
que excede o teatro de operações,
pois ela treina exércitos de jovens
para que suprimam sua inibição
para matar.
E a gente passou a praticar técnicas desse treinamento como jogos.
@ - ccalligari@uol.com.br
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