São Paulo, sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

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CINEMA/ESTRÉIAS

"O PEQUENO SOLDADO"/ "DETETIVE"

Dois filmes de fases bem distintas da obra do cineasta retornam hoje em SP

Godard encara dúvida política e "luta perdida"

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

A irresponsabilidade e indefinição política de "O Pequeno Soldado" (1963) é o retrato de uma geração que ainda não vivera sua "idade da razão", mas que já se projetava nela. "Até aqui minha história tem sido simples: a história de um sujeito sem ideal. E amanhã?", pergunta-se Godard, no início do filme.
Um filme de direita que flerta com o romantismo da esquerda: como explicá-lo aos que se acostumaram a ver em Godard um ícone da esquerda? Talvez começando pelo "mal de la jeunesse" (mal da juventude) da geração nouvelle vague.
Niilista, despolitizada, infantilista, a juventude francesa da Guerra Fria refugiou-se nos cinemas para não compartilhar, em casa, do civismo e do moralismo algo hipócritas dos pais, sobreviventes da Segunda Guerra. A dissensão com os adulto se acentuou com a Guerra da Argélia. "Por que morrer sem convicção na guerra suja dos adultos?", perguntavam-se os jovens, engrossando as estatísticas de deserção.
No filme, Bruno Forestier (Michel Subor) é um desertor francês, um individualista romântico que sonha fugir para o Brasil para não "entrar na guerra como no colégio de nossa infância".
Como o Malraux de "A Condição Humana", Forestier reflete o tempo todo sobre seus atos, mas é do tipo que se põe às questões erradas, perturbado que está pela assincronia entre o seu interior e o seu exterior, entre a idéia que tem de si e a imagem que vê no espelho. Pego apaixonado no meio da guerra entre duas facções rivais, a FLN (Frente de Libertação Nacional) argelina e um comando antiterrorista de direita do qual tenta se desvincular, o "petit soldat" filia-se aos anti-heróis de Samuel Fuller, mas seu verdadeiro pai é mesmo o mercenário de "Cinzas e Diamantes" (Andrzej Wajda, 1959), de quem retoma o lema: o importante na vida é não se dar por vencido.
Anna Karina, iniciando, em plena paixão, seu ciclo com Godard, faz uma revolucionária da FLN a quem Forestier dedica a frase: "Fotografar um rosto é fotografar a alma que há detrás. A fotografia é a verdade. E o cinema é a verdade 24 vezes por segundo". Começando a tentar apreender a alma de sua Karina, Godard se reconcilia, indiretamente, depois da provocação de "Acossado", com as idéias de André Bazin, grão-mestre da geração. Censurado pelo governo, repudiado pela direita e pela esquerda, o filme marcaria o início do fim da moda nouvelle vague. Depois do sucesso de "Acossado", esta era a segunda surpresa que Godard aprontava.
Até receber uma torta na cara no lançamento de "Detetive", no Festival de Cannes, Godard protagonizou uma longa série de surpresas, sempre disposto a não corresponder às expectativas. Em "Detetive" (1985), feito depois dos "anos Karina" e da fase maoísta, ele prometeu um enredo de noir, mas tematizou, mais uma vez, sua própria prostituição de artista, como em "O Desprezo". Godard se vê um pouco como o boxeador que vai protagonizar uma luta comprada, perdida de antemão. Mas a luta perdida, isto é, o filme, não passa de um pretexto para que fale sobre o que pensa e lê, faça uma citação, um novo trocadilho, uma nova "boutade", enredando-se cada vez mais no curto-circuito cinema-literatura.


O Pequeno Soldado
Le Petit Soldat
    
Produção: França, 1963
Direção: Jean-Luc Godard
Com: Michel Subor, Anna Karina
Quando: a partir de hoje no Top Cine

Detetive
Détective
   
Produção: França, 1985
Direção: Jean-Luc Godard
Com: Jean-Pierre Léaud, Nathalie Baye
Quando: a partir de hoje no Top Cine



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