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FORNADA DO MILÊNIO
Oscar celebra amor entre Inglaterra e EUA
GERALD THOMAS
de Nova York
Na esquina de onde eu moro,
em Williamsburg, Brooklyn,
há uma espécie de jogo do bicho. Dois homens operam, de
uma van com as portas abertas, um sistema caseiro (e local) de apostas que inclui coisas tão diversas como um possível ataque norte-americano
contra o Iraque (a aposta não
é nem mais se "sim ou não",
mas "quando"), ou o Oscar.
Não consta no menu do Oscar
o óbvio, pois essa festa é feita
de escolhas óbvias, e sim os
chamados "odds", ou seja, as
anomalias, as surpresas.
"Titanic" ou "Melhor É
Impossível", por exemplo, não
constam na lista do "bicho",
pois estão predestinados -pela própria lei do mercado- a
ganhar.
São os milhares de outros filmes, às vezes pouco conhecidos, que trazem longas filas
para essa esquina. Aqui, como
em todas as casas americanas
na madrugada de segunda para terça, é a imprevisibilidade
que fará a festa. Sim, o público
é narcisista e quer ver a sua
preferência confirmada pelos
5.000 e poucos jurados da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Mas o narcisismo também é
sádico e torna as "exclusões"
ou "injustiças" (que fizeram
com que Hitchcock, por exemplo, nunca tenha ganhado a
estatueta) tão, ou mais,
atraentes do que as vitórias.
Na minha frente, dois ingleses morrem de rir ao se depararem com a profusão de nomes
britânicos na lista. O Oscar
tem sido somente mais uma
manifestação de amor entre a
América e a Inglaterra.
Ou melhor: o "caso" amoroso, na verdade, é o triângulo
Los Angeles - Londres - Nova
York, que está em pleno cio. As
trocas culturais e empresariais
entre essas cidades alcançou
um índice sem precedentes.
Sempre liderada por iniciativa de jovens de ambos os países, fascinados com o "outro
lado do oceano", essa relação
passou por dezenas de fases de
amor e ódio. Mas talvez seja
por meio da energia do rock
and roll, da moda, do mundo
editorial e do cinema que as
fronteiras entre essas duas culturas estejam, a cada dia, mais
indefinidas.
Tem gente que chega ao cúmulo de achar que os Rolling
Stones (tão nitidamente britânicos para o resto do mundo)
são daqui. Londres passou a
ser a "velhinha transviada",
a mais "underground" das
três cidades e tanto eventos
daqui ou de lá como notícias
locais e preocupações bairristas são de conhecimento geral,
pois os programas de variedades da televisão não param de
cruzar o oceano, em ambas as
direções. Quando ligamos a
CNN aqui, já não sabemos se o
âncora está sentado em Westminster, Atlanta ou em Washington.
Um dos ingleses na fila, que
traz enrolada debaixo do braço a edição nova-iorquina da
revista inglesa "Time Out",
assinala -aos berros e risos
histéricos- o filme "Ou Tudo
ou Nada" e nota que o nome
de Leonardo DiCaprio não
consta na lista, pois é dada como certa a sua indicação.
Na minha vez, assinalo "A
Outra Face", "Deconstructing Harry" e "Tempestade
de Gelo" e ando os dois quarteirões até minha casa. Em algumas horas, nem mesmo o
diabólico El Niño, que castiga
a milionária orla de Malibu,
ou a obsessão nacional com a
vida sexual de Clinton despertarão algum interesse.
Nas primeiras horas de terça-feira, o olho da América estará grudado no Oscar 98 e,
mais uma vez, alguns anônimos ganharão fama instantânea, multiplicarão em dez vezes o seu salário, se tornarão
dez vezes mais "inacessíveis".
Em algumas horas, algumas
novas estrelas nascerão.
De fato. Como nos 70 anos
passados, ficamos todos um
pouco estupefatos diante das
indicações anunciadas. Fico
emocionado em ver aquele livro do Gabeira, que deixou a
esquerda urrando ao ser lançado, transformado em filme e
agora, possivelmente, em melhor filme de língua estrangeira.
Fico emocionado com a trajetória épica do próprio Fernando Gabeira (digna de mais
um filme) e temo que ele não
possa estar presente na entrega
do Oscar por ter seu visto, mais
uma vez, recusado.
Ou será que não? Será que o
endosso da Academia vale alguma coisa? A julgar pela grana gerada por Hollywood, presumo que sim. Também não
deixa de ser emocionante ter a
cara do Gabeira num telão, na
festa da entrega, como se fosse
o próprio "Exiled on a Main
Street".
Com o anúncio das indicações, fica claro que a "mélange" entre a América e Inglaterra ultrapassa as expectativas da própria globalização e
humilha a falsa premissa que
forma, hoje, a assim chamada
"Europa Unida".
Fracassada na área cultural,
a "Europa Unida" é uma tentativa tão formal quanto seus
desastrados velhos parlamentares. Nem mesmo a formação
de um canal de televisão bilíngue, o Arte, que transmite em
alemão e em francês, deu certo,
tamanha era a empostação de
suas propostas.
Será simplesmente um problema idiomático? Acho que
não. A relação fluente e sensual entre o Reino Unido e os
Estados Unidos tem muito
mais a ver com o fator "jovem" que rege ambas as sociedades, desde a revolução cultural dos anos 60, do que o fato
de terem em comum a língua
inglesa. Tanto é que a Austrália e o Canadá não estão incluídos nessa parceria.
A relação é orgânica e, se seu
sucesso se devesse à língua em
comum, deveríamos ter também uma ponte ligando o Rio
a Lisboa. Cadê ela? Fora os
eventuais "festivais" culturais, não há nada de orgânico
rolando entre essas duas cidades, infelizmente. Não se vê no
Rio milhares de jovens portugueses com o celular na mão,
dirigindo empresas, espetáculos, enfim, berrando suas identidades pelas ruas. Não se vê,
tampouco, cariocas fazendo o
mesmo em Lisboa.
Também nos editoriais daquele dia, sobre as indicações,
o sotaque anglo-americano se
misturava. Ao defender a nomeação do brilhante "Gênio
Indomável", de autoria do superjovem Matt Damon, ou ao
atacar a Academia pela exclusão de Steven Spielberg, o inglês Harold Evans (editor do
tablóide "Daily News", de
NY) ou a inglesa Tina Brown
(editora da revista "New Yorker") concretizavam o sonho
do colonizador e colonizado.
Assim como na última frase
de Matt Damon em "Gênio
Indomável", "...vou viajar
três milhas para ver se eu acho
minhas raízes em outro lugar", o Oscar celebra uma relação de amor entre duas nações. Assim como essa festa -e
o jogo de apostas da esquina-, a vida e a arte surpreendem muito mais pelas suas estupendas improbabilidades.
Homepage: www.geraldthomas.com
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