São Paulo, sexta, 13 de fevereiro de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
Oscar celebra amor entre Inglaterra e EUA

GERALD THOMAS
de Nova York

Na esquina de onde eu moro, em Williamsburg, Brooklyn, há uma espécie de jogo do bicho. Dois homens operam, de uma van com as portas abertas, um sistema caseiro (e local) de apostas que inclui coisas tão diversas como um possível ataque norte-americano contra o Iraque (a aposta não é nem mais se "sim ou não", mas "quando"), ou o Oscar. Não consta no menu do Oscar o óbvio, pois essa festa é feita de escolhas óbvias, e sim os chamados "odds", ou seja, as anomalias, as surpresas.
"Titanic" ou "Melhor É Impossível", por exemplo, não constam na lista do "bicho", pois estão predestinados -pela própria lei do mercado- a ganhar.
São os milhares de outros filmes, às vezes pouco conhecidos, que trazem longas filas para essa esquina. Aqui, como em todas as casas americanas na madrugada de segunda para terça, é a imprevisibilidade que fará a festa. Sim, o público é narcisista e quer ver a sua preferência confirmada pelos 5.000 e poucos jurados da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
Mas o narcisismo também é sádico e torna as "exclusões" ou "injustiças" (que fizeram com que Hitchcock, por exemplo, nunca tenha ganhado a estatueta) tão, ou mais, atraentes do que as vitórias.
Na minha frente, dois ingleses morrem de rir ao se depararem com a profusão de nomes britânicos na lista. O Oscar tem sido somente mais uma manifestação de amor entre a América e a Inglaterra.
Ou melhor: o "caso" amoroso, na verdade, é o triângulo Los Angeles - Londres - Nova York, que está em pleno cio. As trocas culturais e empresariais entre essas cidades alcançou um índice sem precedentes.
Sempre liderada por iniciativa de jovens de ambos os países, fascinados com o "outro lado do oceano", essa relação passou por dezenas de fases de amor e ódio. Mas talvez seja por meio da energia do rock and roll, da moda, do mundo editorial e do cinema que as fronteiras entre essas duas culturas estejam, a cada dia, mais indefinidas.
Tem gente que chega ao cúmulo de achar que os Rolling Stones (tão nitidamente britânicos para o resto do mundo) são daqui. Londres passou a ser a "velhinha transviada", a mais "underground" das três cidades e tanto eventos daqui ou de lá como notícias locais e preocupações bairristas são de conhecimento geral, pois os programas de variedades da televisão não param de cruzar o oceano, em ambas as direções. Quando ligamos a CNN aqui, já não sabemos se o âncora está sentado em Westminster, Atlanta ou em Washington.
Um dos ingleses na fila, que traz enrolada debaixo do braço a edição nova-iorquina da revista inglesa "Time Out", assinala -aos berros e risos histéricos- o filme "Ou Tudo ou Nada" e nota que o nome de Leonardo DiCaprio não consta na lista, pois é dada como certa a sua indicação.
Na minha vez, assinalo "A Outra Face", "Deconstructing Harry" e "Tempestade de Gelo" e ando os dois quarteirões até minha casa. Em algumas horas, nem mesmo o diabólico El Niño, que castiga a milionária orla de Malibu, ou a obsessão nacional com a vida sexual de Clinton despertarão algum interesse.
Nas primeiras horas de terça-feira, o olho da América estará grudado no Oscar 98 e, mais uma vez, alguns anônimos ganharão fama instantânea, multiplicarão em dez vezes o seu salário, se tornarão dez vezes mais "inacessíveis". Em algumas horas, algumas novas estrelas nascerão.
De fato. Como nos 70 anos passados, ficamos todos um pouco estupefatos diante das indicações anunciadas. Fico emocionado em ver aquele livro do Gabeira, que deixou a esquerda urrando ao ser lançado, transformado em filme e agora, possivelmente, em melhor filme de língua estrangeira.
Fico emocionado com a trajetória épica do próprio Fernando Gabeira (digna de mais um filme) e temo que ele não possa estar presente na entrega do Oscar por ter seu visto, mais uma vez, recusado.
Ou será que não? Será que o endosso da Academia vale alguma coisa? A julgar pela grana gerada por Hollywood, presumo que sim. Também não deixa de ser emocionante ter a cara do Gabeira num telão, na festa da entrega, como se fosse o próprio "Exiled on a Main Street".
Com o anúncio das indicações, fica claro que a "mélange" entre a América e Inglaterra ultrapassa as expectativas da própria globalização e humilha a falsa premissa que forma, hoje, a assim chamada "Europa Unida".
Fracassada na área cultural, a "Europa Unida" é uma tentativa tão formal quanto seus desastrados velhos parlamentares. Nem mesmo a formação de um canal de televisão bilíngue, o Arte, que transmite em alemão e em francês, deu certo, tamanha era a empostação de suas propostas.
Será simplesmente um problema idiomático? Acho que não. A relação fluente e sensual entre o Reino Unido e os Estados Unidos tem muito mais a ver com o fator "jovem" que rege ambas as sociedades, desde a revolução cultural dos anos 60, do que o fato de terem em comum a língua inglesa. Tanto é que a Austrália e o Canadá não estão incluídos nessa parceria.
A relação é orgânica e, se seu sucesso se devesse à língua em comum, deveríamos ter também uma ponte ligando o Rio a Lisboa. Cadê ela? Fora os eventuais "festivais" culturais, não há nada de orgânico rolando entre essas duas cidades, infelizmente. Não se vê no Rio milhares de jovens portugueses com o celular na mão, dirigindo empresas, espetáculos, enfim, berrando suas identidades pelas ruas. Não se vê, tampouco, cariocas fazendo o mesmo em Lisboa.
Também nos editoriais daquele dia, sobre as indicações, o sotaque anglo-americano se misturava. Ao defender a nomeação do brilhante "Gênio Indomável", de autoria do superjovem Matt Damon, ou ao atacar a Academia pela exclusão de Steven Spielberg, o inglês Harold Evans (editor do tablóide "Daily News", de NY) ou a inglesa Tina Brown (editora da revista "New Yorker") concretizavam o sonho do colonizador e colonizado.
Assim como na última frase de Matt Damon em "Gênio Indomável", "...vou viajar três milhas para ver se eu acho minhas raízes em outro lugar", o Oscar celebra uma relação de amor entre duas nações. Assim como essa festa -e o jogo de apostas da esquina-, a vida e a arte surpreendem muito mais pelas suas estupendas improbabilidades.

Homepage: www.geraldthomas.com



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