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SHOW/CRÍTICA
Madredeus à procura de si
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Dói olhar o mar de uma cadeira." Este verso, do poeta lusitano-paulistano Fernando Paixão, poderia servir de epígrafe
para toda música do Madredeus.
A ironia de quem se vê à beira
(sempre à beira) da grande força
natural, a nostalgia de um império (literal ou figurado) da imaginação, a conversão da própria falência em forma de conhecimento: todos são grandes temas portugueses, que se reanimam nas
canções do maior grupo pop português. Ou não se reanimam, em
noites só de nostalgia da nostalgia, como sexta-feira passada, no
teatro Alfa, em São Paulo.
"Anseio/ pela visão final/ da sociedade... Confesso/ que não perdi/ ainda/ toda a vontade/ de ter/ a
fotografia/ de toda a humanidade." Versos como esses, do compositor-letrista-violonista-artista
gráfico-diretor de luz Pedro Ayres
Magalhães, guardam a mistura de
humanismo e minimalismo característica da arte do Madredeus,
desde o primeiro disco do grupo,
em 1987. A estranha forma de vida desses gajos de fatiota e dessa
rapariga de preto, formal e estilosamente reeditando sentimentalismos galegos, veio a se tornar a
própria imagem de uma vida européia esclarecida.
Sua participação no filme de
Wim Wenders, "O Céu de Lisboa" (1995) -consagrada no lindo CD "Ainda"- resultou num repertório de imagens, também,
para essa nova arte da boa fé, onde regionalismo e tradição se misturam com o cosmopolitismo
mais atual. O fado, quem diria,
pode se casar com o rock.
Cada um saberá julgar o caráter
mais ou menos legítimo da combinação; e cada um julgará também o quanto de sabedoria humana, ou baixo pietismo "new
age" se traduz no nome do grupo,
nas letras, na voz incomum da
cantora Teresa Salgueiro.
Se "Movimento", então -o disco e o show- soa decepcionante,
não é por falta de virtudes. Desde
a saída do acordeão e do violoncelo, o Madredeus se esforça para se
reinventar.
Tudo, como sempre, gira em
torno de Teresa; mas o grande
pincel do sintetizador pinta cada
vez mais arrebóis e crepúsculos,
encenando por outras vias as contradições entre provincianismo e
internacionalização (para não falar dos arrebóis da luz).
E os violões? Com seriedade
portuguesa, eles resistem bravamente à captação direta. Mas o
violão, até segundo aviso, permanece impossível de ser bem amplificado: os baixos têm uma dose
enorme de harmônicos, as outras
cordas têm pouco. Nenhum microfone dá conta das duas metades -um dos motivos pelos quais o Madredeus em disco é
sempre melhor. A mixagem (ou,
como eles dizem, a "mistura") é
difícil, mesmo para arranjos tão
simples.
E Teresa? A voz original e limpa,
crescendo para explodir em vibrato nas curvas graves da melodia, animando as gravidades do
sentido, os agudos que cortam o
ar como uma anunciação, a pronúncia como instrumento de expressão amorosa: está tudo lá,
mas curiosamente domado, ou
distanciado.
Cada palavra e cada nota no lugar; mas adivinhado antes -o
que não tira a arte, mas a ilusão de
arte do que agora parece não ilusão da técnica, mas técnica.
Quinze canções assim bastam
para inundar de tristeza a alma do
crítico. Dói olhar uma cadeira do
mar; e não era preciso escutar as
20 músicas para saber que o grupo, nessa noite, não chegaria a si.
Melhor guardar, pelo menos, a
chance de estar errado -única
forma de homenagear, "ainda",
as lindas falências do Madredeus.
Madredeus
Quando: hoje, às 21h (ingressos esgotados)
Onde: teatro Alfa (r. Bento Branco de
Andrade Filho, 722, tel. 0800-558191)
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