São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 2002

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SHOW/CRÍTICA

Madredeus à procura de si

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Dói olhar o mar de uma cadeira." Este verso, do poeta lusitano-paulistano Fernando Paixão, poderia servir de epígrafe para toda música do Madredeus.
A ironia de quem se vê à beira (sempre à beira) da grande força natural, a nostalgia de um império (literal ou figurado) da imaginação, a conversão da própria falência em forma de conhecimento: todos são grandes temas portugueses, que se reanimam nas canções do maior grupo pop português. Ou não se reanimam, em noites só de nostalgia da nostalgia, como sexta-feira passada, no teatro Alfa, em São Paulo.
"Anseio/ pela visão final/ da sociedade... Confesso/ que não perdi/ ainda/ toda a vontade/ de ter/ a fotografia/ de toda a humanidade." Versos como esses, do compositor-letrista-violonista-artista gráfico-diretor de luz Pedro Ayres Magalhães, guardam a mistura de humanismo e minimalismo característica da arte do Madredeus, desde o primeiro disco do grupo, em 1987. A estranha forma de vida desses gajos de fatiota e dessa rapariga de preto, formal e estilosamente reeditando sentimentalismos galegos, veio a se tornar a própria imagem de uma vida européia esclarecida.
Sua participação no filme de Wim Wenders, "O Céu de Lisboa" (1995) -consagrada no lindo CD "Ainda"- resultou num repertório de imagens, também, para essa nova arte da boa fé, onde regionalismo e tradição se misturam com o cosmopolitismo mais atual. O fado, quem diria, pode se casar com o rock.
Cada um saberá julgar o caráter mais ou menos legítimo da combinação; e cada um julgará também o quanto de sabedoria humana, ou baixo pietismo "new age" se traduz no nome do grupo, nas letras, na voz incomum da cantora Teresa Salgueiro.
Se "Movimento", então -o disco e o show- soa decepcionante, não é por falta de virtudes. Desde a saída do acordeão e do violoncelo, o Madredeus se esforça para se reinventar.
Tudo, como sempre, gira em torno de Teresa; mas o grande pincel do sintetizador pinta cada vez mais arrebóis e crepúsculos, encenando por outras vias as contradições entre provincianismo e internacionalização (para não falar dos arrebóis da luz).
E os violões? Com seriedade portuguesa, eles resistem bravamente à captação direta. Mas o violão, até segundo aviso, permanece impossível de ser bem amplificado: os baixos têm uma dose enorme de harmônicos, as outras cordas têm pouco. Nenhum microfone dá conta das duas metades -um dos motivos pelos quais o Madredeus em disco é sempre melhor. A mixagem (ou, como eles dizem, a "mistura") é difícil, mesmo para arranjos tão simples.
E Teresa? A voz original e limpa, crescendo para explodir em vibrato nas curvas graves da melodia, animando as gravidades do sentido, os agudos que cortam o ar como uma anunciação, a pronúncia como instrumento de expressão amorosa: está tudo lá, mas curiosamente domado, ou distanciado.
Cada palavra e cada nota no lugar; mas adivinhado antes -o que não tira a arte, mas a ilusão de arte do que agora parece não ilusão da técnica, mas técnica.
Quinze canções assim bastam para inundar de tristeza a alma do crítico. Dói olhar uma cadeira do mar; e não era preciso escutar as 20 músicas para saber que o grupo, nessa noite, não chegaria a si. Melhor guardar, pelo menos, a chance de estar errado -única forma de homenagear, "ainda", as lindas falências do Madredeus.


Madredeus  
Quando: hoje, às 21h (ingressos esgotados)
Onde: teatro Alfa (r. Bento Branco de Andrade Filho, 722, tel. 0800-558191)



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