São Paulo, sexta-feira, 13 de maio de 2005

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CINEMA/"THE BROWN BUNNY"

Road movie sobre viagem de um motociclista pelos EUA escandaliza com sexo explícito

Andarilho solitário cruza o sonho americano

PAULO SANTOS LIMA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Antes de mais nada, o aviso. "Brown Bunny", filmado e finalizado em película, será exibido no Brasil nesta projeção digital que vem desfigurando os filmes, adulterando o resultado estético pretendido por seus autores.
E em versão três minutos menor (cortada por Vincent Gallo) que a apresentada no Festival do Rio, em 2003 (93 min). Esta era menor que a polêmica edição de quase duas horas exibida em Cannes, mas continha as longas tomadas que davam densidade ao drama do protagonista. Mais enxuto, "Brown Bunny" deixa de ser uma obra-prima para ser, apenas, um filme extraordinário.
Ainda assim, é um filme de longos planos, bem maiores que qualquer outro road movie norte-americano. Bud (Vincent Gallo, que assina da direção à montagem) é o piloto que cruza o país numa van para levar sua motocicleta RS 250 a uma corrida. Apesar do destino claro, Los Angeles, o roteiro de viagem soa incerto, com um Bud errante nesta longa cruzada, que é toda vazada por digressões deste homem.
A primeira cena do filme traduz um pouco essa jornada a lugar nenhum. Estamos numa competição motociclística num circuito oval. Tal geometria faz as motos darem voltas, quase sem destino. A câmera rastreia o evento até encontrar a motoca pilotada por Bud. É ele, mais tarde, quem pegará a estrada, só que para uma viagem destilada por introspecção. Uma jornada da alma.
LA, então, é apenas o ponto físico de chegada, porque Bud procura por algo além e impossível e que está sobretudo nas lembranças que guarda de sua amada ex-mulher Daisy (Chloë Sevigny). Ele tenta exorcizá-la com outras mulheres que encontra no caminho, mas a comparação só aumenta sua desolação.
Num filme em que a retidão das estradas parece dissolvida, assim como o tempo, que se desmonta entre presente e passado, a mais sólida certeza do que está apresentado na tela é o corpo de Bud, para o qual a câmera nutre uma fidelidade exemplar.
Que não a impede de também registrar um museu iconográfico do sonho americano: fast food, máquinas de refrigerantes, cigarros, deserto e asfalto. Inventário de um país que habita o imaginário coletivo. Segue, assim, caminho semelhante ao de "Gerry", no qual Gus van Sant revisita com igual desolação um local mítico da antologia, o Death Valley.
É um traço de cinema moderno, que opta sempre pela opacidade. Porque, se a tradição do road movie é chegar a algum lugar -e, assim, a alguma certeza-, em "Brown Bunny" a única clareza está na memória, que nada mais é que evidência de tempo vivido. Não à toa a sujeira da estrada vai se acumulando no pára-brisa da van, como um depósito arqueológico dessa quase egotrip beatnik.
Esta câmera chega, então, via narrativa estilhaçada, após longa coleta pelas estradas, ao espaço fechado do quarto de hotel. É onde acontece o tal sexo oral entre Daisy e Bud, e a lembrar que o hardcore explícito também faz parte de um imaginário coletivo proibido e, portanto, obscuro.
O pornô é, aqui, o momento revelador, dissolvendo o mistério e celebrando o visível e o invisível, ou seja, corpos e sentimentos. A memória ganha contornos menos abstratos, e daí sabemos o que aconteceu a este casal e quão brutais são o amor e a dor de Bud.
"Brown Bunny", ele todo, celebra o tempo, traduzido na memória e na crença do plano-seqüência como captador de uma experiência. E também é revelador do "bruto" Vincent Gallo como um dos mais sensíveis cineastas, homem corajoso que chega ao sublime da vida até nesta triste história do solitário Bud, que nada mais é do que ele próprio, numa viagem pessoal e sem destino.


Brown Bunny
The Brown Bunny
    
Direção: Vincent Gallo
Produção: EUA/Japão/França, 2003
Com: Vincent Gallo, Chloë Sevigny
Quando: a partir de hoje no Top Cine



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