São Paulo, sexta-feira, 13 de setembro de 2002

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CINEMA/ESTRÉIA

"BOTÍN DE GUERRA"

Senhoras enfrentaram regime militar argentino nos 70

Documentário ilumina luta das avós da Praça de Maio

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

É quase impossível não se comover com a história dessas senhoras que, com a cara e a coragem, sobretudo a coragem, enfrentaram a ditadura argentina dos anos 70, a mais sanguinária de que se tem notícia na América Latina desde que Colombo chegou a este lado do mundo.
Elas se denominavam Mães da Plaza de Mayo (Praça de Maio), foram chamadas por não poucos de Loucas da Plaza de Mayo. As Avós da Plaza de Mayo, de que trata o documentário "Botín de Guerra", de David Blaustein, trata em particular dessas avós, que além de terem filhos dados como desaparecidos também tiveram netos na mesma situação.
Essas crianças, seu destino é conhecido, eram adotadas por famílias próximas aos militares, enquanto seus pais eram invariavelmente mortos. A crer no filme, e não há muito como descrer, as prisioneiras grávidas eram mantidas em vida até darem à luz e somente depois mortas.
Dar conta da luta dessas senhoras não era tarefa fácil, tais e tantos são os aspectos envolvidos, desde o período em que se reuniam clandestinamente, falando por código. Localizar cada criança, recuperá-las, enfrentar o trauma, nenhum desses aspectos é secundário em sua atividade, e não são os únicos.
Não é tanto a amplitude do assunto que leva Blaustein a se embananar, quanto, talvez, uma maneira de conceber o documentário nos moldes propostos pela televisão. Isto é, raramente os depoimentos dessas mulheres não são cortados, seja por imagens exteriores (documentos do período, reconstituições de locais, cenas da época de redemocratização etc.), seja para inserir depoimentos de netos.
Trata-se de uma concepção segundo a qual a permanência da câmera numa mesma imagem por um período razoavelmente longo prejudicaria o ritmo do filme. Com isso, impõe-se um ritmo exterior seja ao tema, seja a ele próprio, que termina por anular a profundidade da própria presença das personagens (para começar, elas são inúmeras, de maneira que a experiência pessoal é tremendamente diluída).
Há momentos em que a câmera detém-se sobre algum dos personagens e perscruta-o. Desgraçadamente, isso acontece apenas quando um deles ameaça chorar enquanto recorda o passado. Quem já viu, alguma vez na vida, o "Jornal Nacional" da Rede Globo terá notado a semelhança de procedimentos e de concepção de mundo.
Ou seja, o que mais importa não é aquilo que se diz, se pensa ou se sente, mas a exteriorização estereotipada da experiência. O que equivale a anulá-la, a jogá-la numa vala comum.
Em poucas palavras, o que falta ao documentário de Blaustein não é sinceridade, nem documentação. O que falta é um ponto de vista que ordene e hierarquize aquilo que se dá a ver. Entre outras coisas, fica meio jogada no ar o que parece ser a tese central do filme: a expropriação dos filhos de militantes como um projeto urdido conscientemente pela ditadura Videla -uma espécie de limpeza ideológica (como se diz em outras circunstâncias de limpeza étnica) atuando sobre os descendentes dos esquerdistas.
Apesar dos tropeços e da fraqueza da concepção, "Botín de Guerra" revela (ou relembra e precisa, para os mais antigos) aspectos importantes desse momento tão soturno da experiência humana no século 20, por isso sua visão é quase indispensável.


Botín de Guerra    
Produção: Argentina/Espanha, 1999
Direção: David Blaustein
Quando: a partir de hoje na Sala UOL de Cinema



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