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CINEMA/ESTRÉIA
"BOTÍN DE GUERRA"
Senhoras enfrentaram regime militar argentino nos 70
Documentário ilumina luta das avós da Praça de Maio
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
É quase impossível não se comover com a história dessas senhoras que, com a cara e a coragem, sobretudo a coragem, enfrentaram a ditadura argentina dos anos 70, a mais sanguinária de que se tem notícia na América
Latina desde que Colombo chegou a este lado do mundo.
Elas se denominavam Mães da
Plaza de Mayo (Praça de Maio),
foram chamadas por não poucos
de Loucas da Plaza de Mayo. As
Avós da Plaza de Mayo, de que
trata o documentário "Botín de
Guerra", de David Blaustein, trata
em particular dessas avós, que
além de terem filhos dados como
desaparecidos também tiveram
netos na mesma situação.
Essas crianças, seu destino é conhecido, eram adotadas por famílias próximas aos militares, enquanto seus pais eram invariavelmente mortos. A crer no filme, e
não há muito como descrer, as
prisioneiras grávidas eram mantidas em vida até darem à luz e somente depois mortas.
Dar conta da luta dessas senhoras não era tarefa fácil, tais e tantos são os aspectos envolvidos,
desde o período em que se reuniam clandestinamente, falando
por código. Localizar cada criança, recuperá-las, enfrentar o trauma, nenhum desses aspectos é secundário em sua atividade, e não
são os únicos.
Não é tanto a amplitude do assunto que leva Blaustein a se embananar, quanto, talvez, uma maneira de conceber o documentário nos moldes propostos pela televisão. Isto é, raramente os depoimentos dessas mulheres não
são cortados, seja por imagens exteriores (documentos do período,
reconstituições de locais, cenas da
época de redemocratização etc.),
seja para inserir depoimentos de
netos.
Trata-se de uma concepção segundo a qual a permanência da
câmera numa mesma imagem
por um período razoavelmente
longo prejudicaria o ritmo do filme. Com isso, impõe-se um ritmo
exterior seja ao tema, seja a ele
próprio, que termina por anular a
profundidade da própria presença das personagens (para começar, elas são inúmeras, de maneira
que a experiência pessoal é tremendamente diluída).
Há momentos em que a câmera
detém-se sobre algum dos personagens e perscruta-o. Desgraçadamente, isso acontece apenas
quando um deles ameaça chorar
enquanto recorda o passado.
Quem já viu, alguma vez na vida,
o "Jornal Nacional" da Rede Globo terá notado a semelhança de
procedimentos e de concepção de
mundo.
Ou seja, o que mais importa não
é aquilo que se diz, se pensa ou se
sente, mas a exteriorização estereotipada da experiência. O que
equivale a anulá-la, a jogá-la numa vala comum.
Em poucas palavras, o que falta
ao documentário de Blaustein
não é sinceridade, nem documentação. O que falta é um ponto de
vista que ordene e hierarquize
aquilo que se dá a ver. Entre outras coisas, fica meio jogada no ar
o que parece ser a tese central do
filme: a expropriação dos filhos de
militantes como um projeto urdido conscientemente pela ditadura
Videla -uma espécie de limpeza
ideológica (como se diz em outras circunstâncias de limpeza étnica) atuando sobre os descendentes dos esquerdistas.
Apesar dos tropeços e da fraqueza da concepção, "Botín de Guerra" revela (ou relembra e precisa, para os mais antigos) aspectos importantes desse momento tão soturno da experiência humana no século 20, por isso sua visão é quase indispensável.
Botín de Guerra
Produção: Argentina/Espanha, 1999
Direção: David Blaustein
Quando: a partir de hoje na Sala UOL de Cinema
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