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MARCELO COELHO
Ser verdadeiro, para Almodóvar, significa exagerar
Tenho certa preguiça com os filmes de Almodóvar. Sei que haverá um turbilhão de acontecimentos trágicos e ridículos; sei que depois de meia hora vou esquecer
tudo o que se passou. Os roteiros
do diretor, engenhosos demais, se
dissipam na memória; suas emoções, extremas, são descartáveis.
Em "Tudo sobre Minha Mãe",
assim como em "Carne Trêmula",
as coisas mudam de figura. Almodóvar abandona o que tinha de
caricatural, de farsesco, de cansativo. Não é que abandone: transforma seus defeitos em virtudes.
A trama de seu novo filme não
poderia ser mais rocambolesca. A
mãe tem um filho atropelado. O
pai é travesti. O travesti engravida
uma freira. A freira morre. A mãe
do filho morto cuida do filho da
freira. A mãe da freira é um horror. A mãe do filho atropelado
ajuda uma atriz lésbica apaixonada por uma toxicômana.
Que mundo! O que há de cansativo nesse roteiro, o que ele tem de
melodramático e de inverossímil,
se salva, entretanto, pela maturidade que Almodóvar adquiriu.
O que parecia simples delírio
brega, frenesi de espanhol com pele de oncinha, adquiriu uma profundidade surpreendente. Em
"Tudo sobre Minha Mãe", Almodóvar faz da inverossimilhança,
da qual sempre gostou, algo natural, quase que automático.
O filme todo gira em torno da
idéia de "atuação", de representação teatral. O travesti se torna
mulher, se convence de que é mulher. A mãe de família se revela
uma atriz talentosa. A freira é
uma farsante. A atriz que entra
na história está representando, no
palco, o papel de Blanche du Bois
em "Um Bonde Chamado Desejo". Blanche du Bois, na peça de
Tenessee Williams, encontra a
desgraça por ser incapaz de abandonar o papel feminino que escolheu para si mesma.
Será a função de mãe apenas
um "papel" teatral? Cada vez que
a mãe do filme revela a tragédia
de sua vida -"meu filho de 17
anos morreu atropelado"-, e essa declaração se repete várias vezes, há uma fusão entre sinceridade pessoal e teatro puro, entre verdade e melodrama.
Almodóvar mexe com algo muito secreto, com algo muito grave,
a saber, o fato de que a desgraça
pessoal tende a nos tornar atores
da própria desgraça. Toda infelicidade, por mais sentida que seja,
se exterioriza em gestos, lágrimas,
convulsões sobre as quais incide,
modernamente, a suspeita de que
são inverossímeis, coisa forçada.
É como se a sociedade moderna
reprimisse o sofrimento; tanta coisa nos martela a idéia de prazer,
de consumo, de bem-estar, que a
própria dor se torna ridícula.
Almodóvar conhece esse ridículo. Como combatê-lo? Como afirmar, numa sociedade azeitada
para o consumo turístico como é a
Espanha, o fundo trágico (espanhol também) dos relacionamentos humanos?
A solução de Almodóvar é genial. Em primeiro lugar, ele investe na inverossimilhança. Tudo pode acontecer num filme seu.
Em segundo lugar, surge a ironia. O melodrama inventado pelo
diretor não é para ser levado a sério. Mas a ironia, que era a meu
ver um pouco barata nos primeiros filmes de Almodóvar, cresce
em profundidade.
Em "Tudo sobre Minha Mãe",
Almodóvar obedece a duas leis simultaneamente. Vê a existência
humana como um acaso absurdo
e, ao mesmo tempo, faz desse acaso um fenômeno controlável, como se fosse um papel teatral que
pudéssemos decorar.
Desse modo, o inverossímil se
torna "natural". É como se o filme
acompanhasse as desventuras de
suas personagens sem fazer nenhum comentário; pontua apenas os absurdos do destino com sinais de exclamação, (!), e vai em
frente.
Há um jogo, em "Tudo sobre
Minha Mãe", entre "destino" e
"papel teatral". Cada um de nós
se torna menos ridículo quando
encara a própria vida sob a ótica
do "destino". Mas, para realizar
essa operação psicológica, uma
dose de farsa, de teatro, é necessária.
O extraordinário, a meu ver, é
que o filme de Almodóvar faz, em
si mesmo, esse jogo. Como um
ator dramático, Almodóvar não
teme a inverossimilhança. Usa recursos narrativos banalíssimos
-o monólogo da personagem
dentro de um trem, por exemplo,
para situar o espectador na lógica
da história- sem que isso comprometa a estética do filme.
Pois o filme libera o exagero. Ser
verdadeiro, ser autêntico, significa exagerar no próprio papel. Como um travesti, mais verdadeiro
quanto mais recorra a plásticas e
silicones. O sofrimento, o drama
-parece dizer Almodóvar-, são
também silicones a que podemos
recorrer.
Filme profundamente otimista,
"Tudo sobre Minha Mãe" encontra, no sofrimento, um teatro voluntário, do qual podemos nos
desvencilhar. Com esse objetivo,
exagera no lado rocambolesco,
farsesco, ridículo, como se dissesse, contra o próprio otimismo, que
nada aconteceu de fato, que tudo
é ficção.
Tamanho talento para a ficção
faz de Almodóvar o menos "artístico", mas um dos maiores artistas do cinema contemporâneo.
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