São Paulo, Quarta-feira, 13 de Outubro de 1999
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MARCELO COELHO

Ser verdadeiro, para Almodóvar, significa exagerar

Tenho certa preguiça com os filmes de Almodóvar. Sei que haverá um turbilhão de acontecimentos trágicos e ridículos; sei que depois de meia hora vou esquecer tudo o que se passou. Os roteiros do diretor, engenhosos demais, se dissipam na memória; suas emoções, extremas, são descartáveis.
Em "Tudo sobre Minha Mãe", assim como em "Carne Trêmula", as coisas mudam de figura. Almodóvar abandona o que tinha de caricatural, de farsesco, de cansativo. Não é que abandone: transforma seus defeitos em virtudes.
A trama de seu novo filme não poderia ser mais rocambolesca. A mãe tem um filho atropelado. O pai é travesti. O travesti engravida uma freira. A freira morre. A mãe do filho morto cuida do filho da freira. A mãe da freira é um horror. A mãe do filho atropelado ajuda uma atriz lésbica apaixonada por uma toxicômana.
Que mundo! O que há de cansativo nesse roteiro, o que ele tem de melodramático e de inverossímil, se salva, entretanto, pela maturidade que Almodóvar adquiriu.
O que parecia simples delírio brega, frenesi de espanhol com pele de oncinha, adquiriu uma profundidade surpreendente. Em "Tudo sobre Minha Mãe", Almodóvar faz da inverossimilhança, da qual sempre gostou, algo natural, quase que automático.
O filme todo gira em torno da idéia de "atuação", de representação teatral. O travesti se torna mulher, se convence de que é mulher. A mãe de família se revela uma atriz talentosa. A freira é uma farsante. A atriz que entra na história está representando, no palco, o papel de Blanche du Bois em "Um Bonde Chamado Desejo". Blanche du Bois, na peça de Tenessee Williams, encontra a desgraça por ser incapaz de abandonar o papel feminino que escolheu para si mesma.
Será a função de mãe apenas um "papel" teatral? Cada vez que a mãe do filme revela a tragédia de sua vida -"meu filho de 17 anos morreu atropelado"-, e essa declaração se repete várias vezes, há uma fusão entre sinceridade pessoal e teatro puro, entre verdade e melodrama.
Almodóvar mexe com algo muito secreto, com algo muito grave, a saber, o fato de que a desgraça pessoal tende a nos tornar atores da própria desgraça. Toda infelicidade, por mais sentida que seja, se exterioriza em gestos, lágrimas, convulsões sobre as quais incide, modernamente, a suspeita de que são inverossímeis, coisa forçada.
É como se a sociedade moderna reprimisse o sofrimento; tanta coisa nos martela a idéia de prazer, de consumo, de bem-estar, que a própria dor se torna ridícula.
Almodóvar conhece esse ridículo. Como combatê-lo? Como afirmar, numa sociedade azeitada para o consumo turístico como é a Espanha, o fundo trágico (espanhol também) dos relacionamentos humanos?
A solução de Almodóvar é genial. Em primeiro lugar, ele investe na inverossimilhança. Tudo pode acontecer num filme seu.
Em segundo lugar, surge a ironia. O melodrama inventado pelo diretor não é para ser levado a sério. Mas a ironia, que era a meu ver um pouco barata nos primeiros filmes de Almodóvar, cresce em profundidade.
Em "Tudo sobre Minha Mãe", Almodóvar obedece a duas leis simultaneamente. Vê a existência humana como um acaso absurdo e, ao mesmo tempo, faz desse acaso um fenômeno controlável, como se fosse um papel teatral que pudéssemos decorar.
Desse modo, o inverossímil se torna "natural". É como se o filme acompanhasse as desventuras de suas personagens sem fazer nenhum comentário; pontua apenas os absurdos do destino com sinais de exclamação, (!), e vai em frente.
Há um jogo, em "Tudo sobre Minha Mãe", entre "destino" e "papel teatral". Cada um de nós se torna menos ridículo quando encara a própria vida sob a ótica do "destino". Mas, para realizar essa operação psicológica, uma dose de farsa, de teatro, é necessária.
O extraordinário, a meu ver, é que o filme de Almodóvar faz, em si mesmo, esse jogo. Como um ator dramático, Almodóvar não teme a inverossimilhança. Usa recursos narrativos banalíssimos -o monólogo da personagem dentro de um trem, por exemplo, para situar o espectador na lógica da história- sem que isso comprometa a estética do filme.
Pois o filme libera o exagero. Ser verdadeiro, ser autêntico, significa exagerar no próprio papel. Como um travesti, mais verdadeiro quanto mais recorra a plásticas e silicones. O sofrimento, o drama -parece dizer Almodóvar-, são também silicones a que podemos recorrer.
Filme profundamente otimista, "Tudo sobre Minha Mãe" encontra, no sofrimento, um teatro voluntário, do qual podemos nos desvencilhar. Com esse objetivo, exagera no lado rocambolesco, farsesco, ridículo, como se dissesse, contra o próprio otimismo, que nada aconteceu de fato, que tudo é ficção.
Tamanho talento para a ficção faz de Almodóvar o menos "artístico", mas um dos maiores artistas do cinema contemporâneo.





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