São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 2004

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LIVRO/ LANÇAMENTO

"Cartas Vienenses" reúne quase 200 correspondências do compositor ao pai, mulher e amigos

Cartas de Mozart mostram seu lado kafkiano

IRINEU FRANCO PERPETUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Ele não deu entrevista nem ao Larry King, nem ao Jô Soares, não deixou diário nem autobiografia, nem escrevia tratados de estética ou crítica musical. Tendo seu nome evocado sempre que se emprega o adjetivo "gênio", Mozart expressou-se mesmo foi por música, e a principal documentação verbal sobre sua vida vem da correspondência com a família.
E que correspondência! Os especialistas estimam em quase 1.200 as cartas da família Mozart no período 1755-91, enquanto as missivas da viúva e da irmã do compositor, escritas após a sua morte, perfazem a cifra de 400.
Sobre nenhum compositor do século 18, ou anterior, subsiste tão vasta correspondência, e, deste vasto "corpus", a editora Veredas resolveu lançar as "Cartas Vienenses", pouco menos de 200 missivas abrangendo seu período musicalmente mais significativo. Algo artesanal, a edição é simpática, traz notas de rodapé elucidativas e um apêndice resumindo a biografia do compositor; mas faz falta um índice onomástico.
O compositor chegou à capital austríaca aos 25 anos de idade, tendo apenas completado a ópera "Idomeneo", que ocupa o número 366 em seu catálogo. Pois bem: na década vienense, seriam cerca de 300 obras e praticamente todas aquelas que viriam a garantir seu lugar de destaque na história da música.
Natural de Salzburgo, na Áustria, Mozart era empregado do arcebispo Hieronymus Colloredo, a exemplo de seu pai, Leopold, que, durante a vida inteira, foi o principal mentor e incentivador da carreira musical do filho.
Leopold Mozart foi uma referência indispensável para o filho, e a correspondência dele com o progenitor constitui não apenas a parcela mais volumosa, mas também a mais interessante de seus dez últimos anos de vida.
Estão lá questões estéticas, "insights" sobre suas próprias obras, sobre outros compositores, sobre intérpretes de sucesso e a prática musical da época. Tudo isso, é claro, entremeado por um ir e vir entre nobres, em busca de alunos, encomendas de obras, caça a assinantes para concertos públicos e a luta por um emprego estável, que nunca chega. Mozart também era chegado numa fofoca, maldiz Colloredo e Salieri o tempo todo, teme ser lesado pelos copistas e procura o tempo todo justificar escolhas que ele sabe de antemão serem desaprovadas por seu pai.
De Leopold, infelizmente, as respostas se perderam. E, depois de sua morte, em 1787, não apenas o volume, como o interesse da correspondência cai consideravelmente. Mesmo o humor meio infantil mozartiano, feito de escatologia, escrita cifrada e uma miscelânea de idiomas cede aos lugares comuns; só lemos Mozart discutir assuntos domésticos com sua mulher, Constanze, e fazer pedidos de dinheiro cada vez mais insistentes ao amigo maçom Johann Michael Puchberg.
Como Kafka, Mozart parece ter cometido sua grande obra epistolar escrevendo ao pai, e seria tentador ler as partituras compostas após o falecimento de Leopold como cartas a este, na posteridade.


Cartas Vienenses
   
Autor: Wolfgang Amadeus Mozart
Tradução: Gabor Aranyi
Editora: Veredas Quanto: R$ 49 (296 págs.)



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