São Paulo, sábado, 14 de fevereiro de 1998

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TV
'Napoleão', que o canal 21 exibe amanhã, resume toda a ousadia do diretor francês; filme, de 1927, dura quatro horas
Abel Gance converte delírio em obra-prima

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Reza a lenda que, para filmar uma batalha de bolas de neve entre o pequeno Bonaparte e seus coleguinhas de escola, no início de seu grandioso e mítico "Napoleão" (1927), que o canal 21 exibe amanhã, Abel Gance teria exigido que as câmeras fossem arremessadas pelo estúdio, "para obter o ponto de vista das bolas de neve".
Os técnicos teriam montado redes para amortecer a queda das câmeras, ao que o cineasta teria exigido que fossem imediatamente removidas, alegando que, como as bolas de neve, as câmeras também deviam se espatifar no chão.
É provável que haja mais mito que história nessa lenda sobre busca de verossimilhança. Mas o fato é que a célebre sequência tem mais de cinema experimental do que muita coisa que hoje continua se arvorando como tal.
Seria pouco enumerar todas as ousadias técnicas (câmeras lançadas dentro de bolas de futebol, como balas de canhão, para filmar a batalha de Toulon; ou as três telas alinhadas, numa espécie de prefiguração do Cinerama), se não tivessem resultado numa das obras mais geniais do cinema -a ponto de a definição ter se tornado um lugar-comum da crítica.
Quando Francis Coppola decidiu relançar o filme, em 1981, reconstituído pelo historiador Kevin Brownlow, colorizado e com trilha criada por seu pai, Carmine Coppola, é provável que estivesse homenageando no intrépido cineasta francês algo da sua própria megalomania americana.
Se Gance, apesar de ter escolhido interpretar no filme um personagem de menor envergadura como o revolucionário Saint-Just, mirou-se na imagem do próprio Napoleão ao transformar em espetáculo feérico a epopéia do imperador da infância até o exílio em Santa Helena (depois de quinze milhões de francos gastos em quatro anos, o projeto foi interrompido no meio do caminho, e o filme termina quando Bonaparte inicia a campanha da Itália), Coppola deve se reconhecer sem grandes esforços na imagem do próprio Gance como cineasta à frente de seus meios e do seu tempo.
É essa versão reconstituída sob os auspícios do diretor de "Appocalipse Now", com quatro horas de duração, sequências tingidas de sépia ou azul, e as três telas formando uma perspectiva panorâmica, que será exibida amanhã na TV -um meio que, sobretudo para os puristas, deve representar uma contradição insuportável com o sonho de grandiosidade que caracteriza o filme.
Mas não há megalomania ou inovação técnica que por si só sustente a reputação de um clássico como "Napoleão".
O filme é isso e um pouco mais: uma junção de vários movimentos da época -a estranha combinação de um ideário das vanguardas com a caricatura e os clichês históricos e o fascínio pelo grande espetáculo, além da presença de um ator, hoje também mítico (Antonin Artaud, leia texto ao lado), resultando num "realismo desvairado". E é dessas que aos olhos do senso comum parecem verdadeiras incongruências que em geral se fazem as grandes obras-primas.

Filme: Napoleão
Diretor: Abel Gance
Quando: domingo às 20h (canal 21)



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