São Paulo, quarta-feira, 14 de março de 2001

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"ESTRELA-GUIA"/CRÍTICA

Ecologia espiritual da novela não responde aos anseios do mundo

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A chamada do "SP TV", transmitida no primeiro intervalo comercial do capítulo de estréia de "Estrela-Guia", anteontem, sintetiza o argumento da nova novela das seis. Chico Pinheiro conclamou os telespectadores, sintonizados no primeiro capítulo do folhetim sobre "os dilemas da vida moderna", a continuarem ligados em problema que vem afetando o cotidiano dos paulistanos: as revoltas na Febem.
As imagens chocantes de guerra urbana, da reportagem, contrastam com a atmosfera de fábula que envolve Cristal, a personagem de Sandy. Fruto da união de um profissional do mercado financeiro que desiste de tudo para viver em comunidade junto aos herdeiros de 68, ao som de "Imagine", de John Lennon, e ao lado de sua companheira, americana, astróloga e linda, Sandy-Cristal encarna a Branca de Neve, a Bela Adormecida e a Estrela-Guia.
Algumas cenas da novela lembram o filme de Walt Disney. Cristal cercada de pássaros amigos na floresta. A luz encantada, as cores pastéis, e a bondade suprema, quase santa, que caracteriza a personagem criada longe das mazelas do mundo, em harmonia com o pai, a mãe e as paisagens bucólicas das grutas e cachoeiras do interior mato-grossense.
Mas Branca de Neve vive na floresta uma fase liminar de sua vida, órfã e condenada pela madrasta. Já na novela, a família preenche o universo da fábula que caracteriza o prólogo da história, universo prestes a desaparecer, em um cataclismo de novela, que deixará a personagem órfã.
Cristal tem um pouco de Bela Adormecida. Mas, em vez de picar o dedo e adormecer o sono profundo, do qual só o seu príncipe será capaz de tirá-la, Cristal acordará, nos próximos capítulos, para o universo da barbárie urbana. E a história se desenvolverá até que o equilíbrio se refaça.
As regras que estruturam o melodrama, gênero que, há séculos, acompanha a modernidade, aparecem nesse capítulo, com precisão impressionante. Elas organizam a crônica do esvaziamento do cotidiano dos que vivem nos congestionamentos, guiados, não pela estrela da espiritualidade, mas pela fissura desmedida do jogo econômico, que justifica a destruição das coisas belas.
Ao final, poderíamos respirar aliviados se, fora do universo televisivo, o mundo não estivesse sendo regido por opções maniqueístas. Mas o recado de Chico Pinheiro permanece. E, além dele, a conexão da estrela que dá título à novela à estrela que interpreta a personagem, fazendo a ponte diária entre o reino do cotidiano, elaborado pelo folhetim eletrônico, e os acontecimentos documentados no jornal.
O capítulo destaca o talento da equipe. Mas a defesa moralista de uma ecologia espiritual não responde ao anseio de abertura às complexidades contraditórias do mundo que inspira os anseios contemporâneos. Vale torcer por narrativas que fujam à fórmula.


Avaliação:   


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