São Paulo, segunda-feira, 14 de março de 2005

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Mostra em NY confirma atualidade de obra de Basquiat

ROBERTA SMITH
DO "NEW YORK TIMES"

A arte cheia de rebarbas, feia-elegante, em fluxo de consciência, que Jean-Michel Basquiat criou parecia excelente na retrospectiva do artista organizada pelo Whitney Museum em 92. E parece ainda mais forte agora, no Brooklyn Museum. A exposição não é necessariamente melhor, talvez seja até um pouco mais fraca em termos de seleção e posicionamento.
Mas a realização artística de Basquiat, produzida durante uma carreira truncada, expõe os pré-requisitos clássicos, talvez quase clássicos demais, para a grandeza: um estilo visual indelével, mas ainda assim infinitamente flexível que aproveita e estende o passado, reflete sobre sua era e se mantém inovador e relevante.
A realização do artista ganha pertinência especial em um momento em que o desenho domina as mídias artísticas e variações do grafite proliferam; quando o figurativismo e o expressionismo são parte do mix de estilos que os artistas jovens tomam por axioma, da mesma forma que o fazem com relação à atitude política; e quando a linguagem e o som (graças apenas em parte ao vídeo) são tão ubíquos nas artes plásticas quanto a tinta sobre a tela.
Basquiat, que disparou para o coração da superaquecida cena artística dos anos 80 com suas primeiras mostras, em 81 e 82, nasceu em 1960, no Brooklyn. Seu pai era haitiano, e a mãe, porto-riquenha. Pintava e desenhava desde a infância e era fascinado pelo manual Gray de anatomia, que sua mãe lhe deu de presente quando ele tinha sete anos, e estava machucado depois de um acidente de automóvel. Imagens rotuladas do corpo humano, quase sempre negro e masculino, se tornaram marca registrada de sua arte.
Depois de sair de casa, aos 17 anos, suas primeiras incursões artísticas, em parceria com um colega de escola, Al Diaz, consistiam em pichar edifícios no SoHo e no Lower East Side com poemas enigmáticos e aforismos, assinados "Samo" (compressão de "same old, same old"). Logo começou a pintar sobre superfícies encontradas nas ruas -portas, janelas, caixas velhas...
Basquiat rapidamente começou a exibir um domínio precoce de cor, linha, linguagem e composição, estimulado por uma urgência intrínseca. Ele produzia, na verdade, elaboradas e loquazes "cartas ao mundo", nas palavras de Emily Dickinson. Em seus trabalhos, imagens e palavras, abstração e representação, precisão e incoerência eram improvisados com espantosa velocidade na forma de campos tumultuados e antagônicos de idéias.
Como muitos dos artistas de sua geração, entre os quais Julian Schnabel, David Salle e Philip Taafe, ele inventou uma forma própria de colagem. Recobria telas com seus desenhos e, posteriormente, fotocópias de desenhos, antes de acrescentar camadas adicionais de tinta e mais desenhos. Ao contrário da maioria de seus contemporâneos, Basquiat tinha um tema candente: a negritude, suas glórias, histórias e dor, além do fardo do colonialismo, escravidão e discriminação.
Basquiat trabalhou como um demônio por sete anos, e depois morreu, em 1988, vítima das drogas, um vício exacerbado pelo sucesso e pela morte de seu mentor, Andy Warhol. Tornou-se símbolo do acelerado ciclo de sucesso, excesso e destruição que era a marca da década de 80.
A exposição foi organizada por quatro curadores: Marc Mayer, ex-diretor assistente do museu e agora diretor do Musée d'Art Contemporain de Montréal; Franklin Sirmans, crítico e curador independente; Fred Hoffman, curador do Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles; e Kellie Jones, professora de história da arte na Universidade Yale.
Não se sabe por que tantos curadores foram necessários, mas todos contribuíram de maneira capaz para o catálogo da mostra. Mayer considera Basquiat o último pintor modernista, um artista que reiterou seus estilos, fontes e inovações em uma erupção final de glória. Sirmans argumenta que Basquiat era um profeta visual do hip hop, o que amplifica a ressonância das palavras gaguejadas, das frases aglomeradas do pintor, que lembram um DJ repetindo o mesmo groove inúmeras vezes.
Como os artistas de hip hop, Basquiat lidou com as desigualdades sociais dos EUA de maneira que eram veementemente engajadas e acessíveis, mas rigidamente formais. As desigualdades persistem, mas para nossa sorte o mesmo se aplica ao exemplo dessa força, mais intensa do que nunca.


Tradução de Paulo Migliacci

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