São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2000


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FESTIVAL DE DOCUMENTÁRIOS

Vídeo desfaz injustiça contra Zé do Caixão

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

"O meu mundo é estranho, pois é composto de forças estranhas, mas não mais estranhas do que você!", diz Zé do Caixão, em close, apontando para a câmera, na abertura do documentário "Maldito - O Estranho Mundo de José Mojica Marins", que será exibido hoje, às 21h, no Itaú Cultural, em São Paulo, na competição brasileira do festival É Tudo Verdade.
Corta para 1980. Em Belo Horizonte, o notório personagem criado pelo cineasta José Mojica Marins dá uma aula de teatro.
Seus alunos, de olhos fechados, são levados a crer que estão em um avião, que cai. Pouco a pouco, o laboratório vira uma catarse. Alunos choram, alguns desmaiam, e, como num culto, Zé do Caixão grita: "Entramos no inferno da Terra!". E repete: "Inferno! Inferno!".
Corta para 1999. Mojica, em sua casa, em São Paulo, aparece de short, alimenta pássaros, lê as manchetes do "Notícias Populares". A TV ligada exibe um jogo de futebol. O cineasta, que aterrorizou o público em mais de 35 longas e 80 especiais para a TV, leva uma vida moderada, pacata e mordazmente comum.
"Maldito", vídeo dirigido e produzido pelos jornalistas André Barcinski (editor do caderno Folhateen) e Ivan Finotti, mergulha na história de um dos personagens mais ricos e complexos que existem na cultura popular brasileira e desfaz uma injustiça.
Apesar de ser reconhecido internacionalmente e considerado um gênio, José Mojica Marins, que, muito antes de Brian de Palma, já contava histórias de personagens enterrados vivos ou exibia mãos que saíam de covas, é tratado com desdém em sua terra.
Para sobreviver, hoje em dia, ele anima bingos. Não filma há mais de 15 anos. Entrou para o mercado pornô, para conseguir filmar, e chegou ao gênero bestialidade (sexo com animais).

Sem paternalismo

"Por aqui, seus entrevistadores estão mais interessados em saber como ele consegue lavar as mãos, com unhas tão compridas, do que como pode um cineasta, que produzia graças às fartas bilheterias de seus filmes, sem nunca utilizar dinheiro público, ficar tanto tempo sem filmar", afirma Barcinski.
"O controle estatal, que gerou os orçamentos astronômicos, e a censura acabaram com o Zé do Caixão no cinema. Ele não roubou dinheiro de orçamentos de filmes. Nenhum filme seu deu prejuízo. Alguns estão entre as 20 maiores bilheterias do país."
O calvário de Zé do Caixão começou durante o regime militar, que censurou, em 1971, "O Despertar da Besta", que muitos consideram sua obra-prima.
Como era um cineasta que produzia com o dinheiro da bilheteria anterior, Mojica se viu forçado a procurar produtores, que não se dispuseram a colocar dinheiro em produções que certamente teriam problemas com a censura.
Em "O Despertar da Besta", alguns personagens ficam presos em máquinas de tortura, uma paródia inconsciente do clima de terror da época. É no documentário que Mojica vê, pela primeira vez, o ato de censura, que indicava os cortes a serem feitos, que inviabilizaram o filme. Enquanto Mojica lê, vemos na tela a cena censurada.
"Ele nunca tinha visto o ato da censura antes. Foi um choque, devido às palavras que usaram para descrever a sua obra", diz Barcinski.
O documentário, um filme autofinanciado, como os filmes de Mojica, não foi realizado com dinheiro público. "Não quisemos fazer uma coisa rebuscada, com luz, porque tirava a naturalidade", conta o jornalista.
Os diretores demoraram dois anos para realizá-lo. Gastaram US$ 13 mil, incluindo a compra do equipamento. A idéia do documentário nasceu depois que Barcinski e Finotti escreveram o livro "Maldito - A Vida e o Cinema de José Mojica Marins" (editora 34).
"A pesquisa do livro rendeumuito material visual. Mojica morou 18 anos em fundos de cinemas. Largou a escola aos 12 anos. Mal sabe escrever. É quase um cineasta intuitivo. A técnica, às vezes, tira a espontaneidade. Ele não tem informação técnica, nem uma organização estética. Há estudiosos, no exterior, que dizem que ele foi influenciado pelo cinema japonês", completa Barcinski.



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