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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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MÚSICA ERUDITA

OSM, regida por Ira Levin, fica devendo sua verdadeira interpretação do "Réquiem", de Hector Berlioz

Infernos meio mornos no Municipal

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Como era ateu, Berlioz (1803-69) não tinha medo de nada e escreveu um dos monumentos litúrgicos mais espantosos da história da música. Composto em 1835, por encomenda oficial, o "Réquiem" dá voz aos vivos e mortos, faz soar as trombetas do Apocalipse e as flautas do Paraíso e incendeia cada pobre alma na platéia. Não talvez a do Municipal, sexta passada, onde a Orquestra Sinfônica Municipal e os corais Lírico e Paulistano recriaram infernos afinal meio mornos, sob a regência de Ira Levin.
As duas melhores frases sob Berlioz não são verdade. Uma é de Mendelssohn, para quem "Berlioz fez enormes esforços para enlouquecer, sem sucesso". A outra, de Debussy, que via na arte do antecessor "menos música do que a ilusão da música, produzida com instrumentos emprestados da literatura e da pintura". Duzentos anos depois da morte de Berlioz, essas opiniões não dão conta do que há de mais original na música de um dos mais arrojados compositores românticos, mas têm sua dose de pertinência. É a música no limite da loucura; a música no limite de se transformar em outra arte.
No caso do "Réquiem" (ou "Grande Messe des Morts"), isso implica monumentais forças sonoras, o que não se traduz necessariamente em muito barulho o tempo todo. Um dos pontos mais extraordinários dessa hora e meia de música é a sequência delicada de acordes das flautas (bem agudas) e trombones (bem graves) no "Hostias", pontuando o coral homofônico das vozes. São sete acordes, mais a coda -os trombones em profundezas descarnadas e as flautas presas numa nota-, até o último si bemol menor. Oito acordes, então, nenhum dos quais infelizmente saiu afinado.
Que Berlioz faz muito barulho a maior parte do tempo, faz mesmo; um verdadeiro armagedão no "Tuba Mirum", com os metais divididos na platéia, mais os quatro tímpanos no palco. Seja na orquestra, seja nos coros -uma população e tanto, transbordando para a coxia -, eram fortíssimos como esse que carregavam o sentido do "Réquiem" de Levin. E o resultado, muitas vezes, foi de grande impacto.
Paradoxalmente, os músicos não soavam muito engajados. Nem pareciam estar inteiramente lá. A regência, de sua parte, parecia focada em manter as tropas unidas, mais do que em baixar aos infernos ou descortinar os campos do céu.
No penúltimo movimento, o tenor faz lindos solos, antecedendo as espetaculares fugas do "Hosanna". Marcello Vanucci tem uma voz poderosa, de vocação operística. Compreensivelmente nervoso, sofreu problemas de afinação (duas vezes) naquela nota difícil, o si bemol de "Sa-baoth".
Enfim: não foi um "Réquiem" de sutilezas, nem de satanismos. Não dá para definir bem que Berlioz foi esse: nem antigo, nem moderno, nem fervoroso, nem "cool". Foi só um primeiro Berlioz, e a OSM fica devendo, desde já, sua verdadeira Grande Missa dos Mortos.


Réquiem
  
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, tel. 0/xx/11/6846-6000)
Quando: amanhã, às 21h
Quanto: de R$ 15 a R$ 50



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