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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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NELSON ASCHER

Déjà vu de novo

Um belo dia, nos idos de 1982, uma junta militar latino-americana, lembrando-se de certas ilhotas do Atlântico Sul disputadas havia século e meio, resolveu invadi-las. Não se tratava de libertar seus concidadãos, pois, que eu saiba, no arquipélago em questão não havia nenhum. Os ilhéus, em ordem crescente de importância demográfica, eram um punhado de humanos oriundos de outra ilha no extremo oposto do planisfério, muitas ovelhas e centenas de milhares de pinguins. Nenhum deles foi previamente consultado.
A Guerra das Falklands ou Malvinas opôs não inimigos tradicionais, mas dois países cujas relações mútuas, geralmente boas, haviam outrora sido quase simbióticas: a Argentina e a Inglaterra. Nem existia, numa época marcada por confrontos ideológicos, contraposição doutrinária óbvia entre a ditadura fascistizante e o governo de Margaret Thatcher, que revigorara o conservadorismo ocidental.
O oportunismo da junta, que lançou mão do chauvinismo para aplacar a ira popular provocada por sua própria incompetência generalizada, jamais foi posto em dúvida. Como que para reforçar tamanha inépsia, sua ação foi desastrosa até em termos marciais. O general Galtieri e seus cúmplices, além de enviarem às ilhas recrutas mal treinados, convocados às pressas e com equipamento tão inadequado que nem sequer incluía agasalhos para as temperaturas subpolares da região, colocou-os sob o comando de oficiais cuja única experiência de batalha era atirar em civis desarmados. Mas o general tinha certeza de que a reação britânica se limitaria às gestões diplomáticas. De acordo com seus planos, nenhum plano era necessário.
Convencidos de que, caso a irritação inglesa transcendesse o aspecto puramente verbal, os EUA, que então favoreciam as ditaduras anticomunistas, tratariam de contê-la -nossos vizinhos esqueceram-se da relação especial que há muito une os anglo-saxões. Considerando que perder guerras não é costume britânico, uma vez que o Reino Unido despachou sua frota rumo ao hemisfério Sul, o desenlace, que poderia ter sido previsto por qualquer um, estava decidido: derrota argentina e queda do governo militar.
Apesar da fama internacional do general Augusto Pinochet, a ditadura argentina era consideravelmente mais cruel (e economicamente mais catastrófica) do que a chilena. A reputação de Pinochet advém de uma combinação de fatores, pois, personificando sozinho um regime que depusera e matara um socialista carismático e ainda mais famoso, ele virou personagem de romances que foram depois filmados.
Quanto à ditadura do outro lado dos Andes, encabeçada que era pela meia dúzia de membros de duas juntas sucessivas, ela ficou sem uma cara singular, marcante. Com sua folha corrida de tortura, "desaparecidos", corrupção etc., teria sido fácil imaginar que um governo desses, assumindo o papel de agressor numa guerra inútil que iniciara, não obteria outro apoio que o de partidários aguerridos. Que seu adversário também fosse de direita, embora infinitamente mais moderado, justificaria a indiferença: que os lobos devorem os lobos.
Mas não foi esse o caso. A população que, um dia antes da invasão, abominava seus opressores, sucumbiu ao fervor patriótico e este perdurou até a rendição que, por causa das boas notícias inventadas e da censura das ruins, tomou-a de surpresa. Tal delírio foi, numa certa medida, compreensível e, para todos os efeitos, os argentinos redimiram-se depondo e punindo os responsáveis.
Como explicar, no entanto, a atitude das esquerdas latino-americanas que aderiram imediata e incondicionalmente à campanha "antiimperialista" de uma alcatéia de déspotas sádicos? Como é que gente que se orgulha de ser realista, de compreender o mecanismo das relações internacionais nas minúcias de sua materialidade, imaginou que uma potência militar e industrial do Primeiro Mundo perderia para uma economia e um Exército de terceira do Terceiro ? Realmente grave é que não haja aí mistério nenhum. Debaixo de toda dialética, da luta de classes, do combate ao capitalismo monopolista, ardia uma pulsão mais primitiva, uma vontade ancestral de desforra que, simplificadamente, traduzia-se como "nós, latinos, pobres e católicos, nós, os eternos perdedores, humilharemos a arrogância desses anglo-saxões, protestantes e ricos que sempre vencem".
Fast-forward (botão FF) para, como dizia o Zé Colméia, o "déjà vu de novo". Comparados a Saddam Hussein, tanto Galtieri quanto Pinochet seriam candidatos viáveis à presidência da Anistia Internacional (particularmente agora, quando é a Líbia que preside a Comissão de Direitos Humanos da ONU). Malgrados todos os sofismas imagináveis, repetir em vão a palavra "paz", como se fez Urbi Et Orbi recentemente, equivale a endossar de fato, nem que apenas por omissão, uma tirania. Por seu turno, a derrota da coalizão anglo-americano-australiana nunca esteve nas cartas. Assim, bombardeado e sob ocupação, entre (nem tantas) ruínas e pilhagem, o Iraque já é, hoje mesmo, o mais livre dos países árabes. Quem não acredita nisso que pergunte aos iraquianos. Eles têm respondido dançando nas ruas.
Dizia-se dos Habsburgos, os monarcas do Império Austro-Húngaro, que eles nem esqueciam nem aprendiam nada. Se este é o principal legado que deixaram, seus herdeiros cresceram e se multiplicaram.



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