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NELSON ASCHER
Déjà vu de novo
Um belo dia, nos idos de
1982, uma junta militar latino-americana, lembrando-se de
certas ilhotas do Atlântico Sul disputadas havia século e meio, resolveu invadi-las. Não se tratava
de libertar seus concidadãos, pois,
que eu saiba, no arquipélago em
questão não havia nenhum. Os
ilhéus, em ordem crescente de importância demográfica, eram um
punhado de humanos oriundos
de outra ilha no extremo oposto
do planisfério, muitas ovelhas e
centenas de milhares de pinguins.
Nenhum deles foi previamente
consultado.
A Guerra das Falklands ou
Malvinas opôs não inimigos tradicionais, mas dois países cujas
relações mútuas, geralmente
boas, haviam outrora sido quase
simbióticas: a Argentina e a Inglaterra. Nem existia, numa época marcada por confrontos ideológicos, contraposição doutrinária óbvia entre a ditadura fascistizante e o governo de Margaret
Thatcher, que revigorara o conservadorismo ocidental.
O oportunismo da junta, que
lançou mão do chauvinismo para
aplacar a ira popular provocada
por sua própria incompetência
generalizada, jamais foi posto em
dúvida. Como que para reforçar
tamanha inépsia, sua ação foi desastrosa até em termos marciais.
O general Galtieri e seus cúmplices, além de enviarem às ilhas recrutas mal treinados, convocados
às pressas e com equipamento tão
inadequado que nem sequer incluía agasalhos para as temperaturas subpolares da região, colocou-os sob o comando de oficiais
cuja única experiência de batalha
era atirar em civis desarmados.
Mas o general tinha certeza de
que a reação britânica se limitaria às gestões diplomáticas. De
acordo com seus planos, nenhum
plano era necessário.
Convencidos de que, caso a irritação inglesa transcendesse o aspecto puramente verbal, os EUA,
que então favoreciam as ditaduras anticomunistas, tratariam de
contê-la -nossos vizinhos esqueceram-se da relação especial que
há muito une os anglo-saxões.
Considerando que perder guerras
não é costume britânico, uma vez
que o Reino Unido despachou sua
frota rumo ao hemisfério Sul, o
desenlace, que poderia ter sido
previsto por qualquer um, estava
decidido: derrota argentina e
queda do governo militar.
Apesar da fama internacional
do general Augusto Pinochet, a
ditadura argentina era consideravelmente mais cruel (e economicamente mais catastrófica) do
que a chilena. A reputação de Pinochet advém de uma combinação de fatores, pois, personificando sozinho um regime que depusera e matara um socialista carismático e ainda mais famoso, ele
virou personagem de romances
que foram depois filmados.
Quanto à ditadura do outro lado dos Andes, encabeçada que
era pela meia dúzia de membros
de duas juntas sucessivas, ela ficou sem uma cara singular, marcante. Com sua folha corrida de
tortura, "desaparecidos", corrupção etc., teria sido fácil imaginar
que um governo desses, assumindo o papel de agressor numa
guerra inútil que iniciara, não
obteria outro apoio que o de partidários aguerridos. Que seu adversário também fosse de direita,
embora infinitamente mais moderado, justificaria a indiferença:
que os lobos devorem os lobos.
Mas não foi esse o caso. A população que, um dia antes da invasão, abominava seus opressores,
sucumbiu ao fervor patriótico e
este perdurou até a rendição que,
por causa das boas notícias inventadas e da censura das ruins,
tomou-a de surpresa. Tal delírio
foi, numa certa medida, compreensível e, para todos os efeitos,
os argentinos redimiram-se depondo e punindo os responsáveis.
Como explicar, no entanto, a
atitude das esquerdas latino-americanas que aderiram imediata e incondicionalmente à
campanha "antiimperialista" de
uma alcatéia de déspotas sádicos?
Como é que gente que se orgulha
de ser realista, de compreender o
mecanismo das relações internacionais nas minúcias de sua materialidade, imaginou que uma
potência militar e industrial do
Primeiro Mundo perderia para
uma economia e um Exército de
terceira do Terceiro ? Realmente
grave é que não haja aí mistério
nenhum. Debaixo de toda dialética, da luta de classes, do combate
ao capitalismo monopolista, ardia uma pulsão mais primitiva,
uma vontade ancestral de desforra que, simplificadamente, traduzia-se como "nós, latinos, pobres e
católicos, nós, os eternos perdedores, humilharemos a arrogância
desses anglo-saxões, protestantes
e ricos que sempre vencem".
Fast-forward (botão FF) para,
como dizia o Zé Colméia, o "déjà
vu de novo". Comparados a Saddam Hussein, tanto Galtieri
quanto Pinochet seriam candidatos viáveis à presidência da Anistia Internacional (particularmente agora, quando é a Líbia
que preside a Comissão de Direitos Humanos da ONU). Malgrados todos os sofismas imagináveis, repetir em vão a palavra
"paz", como se fez Urbi Et Orbi recentemente, equivale a endossar
de fato, nem que apenas por
omissão, uma tirania. Por seu
turno, a derrota da coalizão anglo-americano-australiana nunca esteve nas cartas. Assim, bombardeado e sob ocupação, entre
(nem tantas) ruínas e pilhagem, o
Iraque já é, hoje mesmo, o mais livre dos países árabes. Quem não
acredita nisso que pergunte aos
iraquianos. Eles têm respondido
dançando nas ruas.
Dizia-se dos Habsburgos, os
monarcas do Império Austro-Húngaro, que eles nem esqueciam nem aprendiam nada. Se este é o principal legado que deixaram, seus herdeiros cresceram e se
multiplicaram.
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