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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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Sem apelar para o pop, Chivas Festival traz Paul Motian e Mary Stallings

Jazz puro-sangue

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na contramão da maioria dos festivais internacionais de jazz, que recorrem cada vez mais à música pop para ampliar suas platéias, o Chivas Jazz Festival reafirma sua opção pelo jazz sem misturas. É o que mostra o programa de sua quarta edição (veja quadro nesta página), que vai acontecer de 28 a 31 de maio, em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Nomes de jazzistas inéditos em palcos brasileiros, como o do baterista Paul Motian, dos pianistas Paul Bley e Jason Moran ou ainda dos saxofonistas Arthur Blythe e Eric Alexander, indicam que o Chivas Festival foca sua programação no jazz de verdade, seja o "mainstream" ou o "bebop", ou ainda estilos individuais mais afinados com a vanguarda.
Uma cantora norte-americana praticamente desconhecida no país, apesar de já ter se apresentado aqui três décadas atrás, tem grandes chances de terminar o festival na irônica condição de "revelação". Até porque a elegante Mary Stallings é uma espécie de tesouro escondido do cenário atual do jazz.
Sua história lembra em parte as de Alberta Hunter e Shirley Horn, cantoras que retornaram à cena do jazz depois de décadas de afastamento. Miss Stallings deixou os palcos em plena ascensão, em meados dos anos 70, depois de se apresentar como vocalista das bandas dos mestres Dizzy Gillespie, Billy Eckstine e Count Basie.
"Eu me afastei por uma combinação de motivos, mas antes de tudo por causa das cansativas turnês. Eu tinha família e queria estar com ela. Foi uma decisão muito difícil de tomar, mas necessária", disse à Folha, por telefone, de San Francisco, sua cidade natal.
Declarando-se "ansiosa" por retornar ao Brasil, onde cantou ao lado de Gillespie em 1974, Stallings se lembra de ter visitado uma escola de samba carioca.
"Ensinaram minha filha, que era pequena, a dançar o samba. Nós nos divertimos muito", conta, assumindo ser fã da música brasileira. "Só se eu fosse de outro planeta não teria afinidade com essa música", brinca.
Dona de estilo pessoal que remete aos de outras grandes cantoras do gênero, como Carmen McRae e Ella Fitzgerald, Stallings reconhece que tomou Dinah Washington como modelo, no início da carreira. "Fiquei muito impressionada com a dicção e o modo dela de interpretar as canções. Dinah era muito leve e eu, de certo modo, segui essa direção."
Graças às importantes parcerias das quais participou, na fase inicial de sua carreira, a autodidata Stallings diz ter aprendido muito. "Billy Eckstine era um expert na arte de interpretar uma canção e de como se comportar no palco. Com Dizzy eu aperfeiçoei minha musicalidade. Aprendi como frasear, como lidar com o ritmo. Já Count Basie me transmitiu antes de tudo a disciplina necessária para cantar com músicos que tocavam tão bem", resume.
Com sete álbuns lançados depois de voltar à cena musical no início dos anos 90, Mary exibe em seu último CD, "Live at the Village Vanguard" (MaxJazz, 2001), uma prévia do que poderá apresentar no 4º Chivas Jazz Festival. Seu sofisticado repertório destaca clássicos standards do gênero, compostos por medalhões como Duke Ellington e Cole Porter.
"Gosto de cantar canções que reflitam a minha experiência de vida. Geralmente elas envolvem situações de amor e perda", observa Mary Stallings, dizendo que ainda não definiu o repertório de seus shows no festival, mas está planejando alguns standards "com um sabor brasileiro". Essas canções devem entrar em seu próximo álbum, que começa a ser gravado em outubro, pelo selo MaxJazz.
Quanto à cena atual do jazz, Stallings considera que ela é "100% diferente" daquela que abandonou três décadas atrás. "Hoje o marketing supera o talento. A indústria prefere se centrar em artistas mais jovens. Isso é trágico, porque no jazz a essência da música está ligada à vida do artista. Você só consegue atingir a alma dessa música se já tiver vivido, se não ficará apenas num nível superficial. Não adianta somente cursar uma escola para fazer essa música. É preciso ter experiência de vida."


Carlos Calado é autor de "O Jazz como Espetáculo", entre outros livros


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