São Paulo, quarta-feira, 14 de abril de 2004

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CINEMA

Diretor argentino, que fará oficina no Rio, fala das novas produções argentina e brasileira

Solanas percorre trajeto entre rios

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

Os números ele conhece na ponta da língua, quantos estão desempregados, quantos passam fome, qual é o tamanho da inflação e quanto a Argentina deixou de crescer em 2003.
Se no passado o cinema de Fernando Solanas, 68, se dedicava a elaborar a cosmogonia da identidade argentina e a opor-se à ditadura, em filmes como "Tangos - O Exílio de Gardel" (85), agora o diretor se esforça por tentar diagnosticar as moléstias desse país doente, apontando um dedo acusador ao que julga ser o responsável por sua enfermidade, o neoliberalismo. Ou, em suas palavras, "a maneira como a Argentina se entregou de joelhos ao FMI".
É a visão que está por trás de sua mais nova produção, "Memórias del Saqueo" (2004), um filme-ensaio em que o cineasta trata do que chama de "genocídio social".
"Nos anos 90 nos tornamos os melhores alunos do Fundo, com isso multiplicamos nossa dívida externa e criamos uma legião de miseráveis", disse à Folha, por telefone, de Buenos Aires.
"Memórias del Saqueo" será utilizado por Solanas em uma oficina que ministrará dentro do evento "Pratas dos Rios - Diálogo entre o Rio de Janeiro e o Rio da Prata", que tem início amanhã, no Rio.
Autor de alguns clássicos do cinema latino-americano, como "La Hora de los Hornos" (1968) e "Sur - Amor e Liberdade", o cineasta argentino acaba de ser homenageado com o Urso de Ouro no último Festival de Berlim.
Atualmente, prepara um complemento de "Memórias del Saqueo", que se chamará "Argentina Latente", também sobre a crise. "O cinema segue sendo o meio de maior impacto cultural que podemos utilizar. O filme de Michael Moore ["Tiros em Columbine'] fez mais por mostrar a sociedade americana do que muitas outras coisas feitas lá. Creio que esses meus dois filmes podem fazer o mesmo por meu país", diz.
Solanas concorda que Brasil e Argentina estejam vivendo um momento de revitalização de seus cinemas. Questiona, porém, os confetes jogados apenas na nova produção comercial argentina. "Coisas como "O Filho da Noiva", co-produzidas por emissoras de TV, não respondem por essa retomada sozinhas. Esse é um filme de mercado, comercial, ainda que simpático e muito bem feito. Mas há também o cinema jovem, independente, e o cinema-ensaio. Todos têm vivido bons momentos."
Além de uma necessidade geral de reflexão provocada pela crise, Solanas vê como responsável por esse novo vigor argentino a reforma nas leis de financiamento do cinema, feitas em 1995. Naquele ano, o Instituto Nacional de Artes Audiovisuais (Incaa) se tornou independente e passou a gerir um orçamento formado por 10% da venda das bilheterias de todo o país mais a quarta parte do que pagam TVs e rádios pelo uso de suas licenças. Com isso, o Incaa dá crédito à produção de 45 filmes por ano e ainda financia a Escola Nacional de Cinema.
A maioria das produções de sucesso dessa retomada são de baixo, ou baixíssimo, custo. Para Solanas, isso tem um impacto na estética compartilhada por essa geração. "Filmes baratos liberam. Quanto mais baixo é o orçamento, mais desamarrados trabalham o autor e o diretor. É aí que entram os talentos pessoais. O que iguala essa geração é a liberdade."
Sobre o bom momento brasileiro, Solanas elogia os filmes de Walter Salles e Luiz Fernando Carvalho, mas faz críticas duras a "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles. "É um trabalho extraordinário de realização. Mas todo o enfoque é dado ao mecanismo da violência, com engrenagens narrativas hollywoodianas. É como uma montanha-russa, você sofre por duas horas. Ao final, porém, fiquei sem saber o que mais há ao redor dos garotos. E, com uma quarta parte da ferocidade usada, eu já teria compreendido o tema da violência", conclui.


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