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COMENTÁRIO
Com "A Luta", Zé Celso ensina que a sabedoria é um dom interior
BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS
Na terceira parte de "Os Sertões", Zé Celso faz no catálogo
uma dedicatória surpreendente.
Evocando 40 anos de tropicalismo e da "influência do poeta antropófago Oswald em todas as
suas criações", dedica-lhe. Mas
também a dedica a Silvio Santos,
chamado de "empresário acima
de tudo artista, animador, ator".
Zé Celso faz isso alegando que
teve a sorte de contracenar nos últimos 20 anos com Silvio Santos,
um dos mais poderosos atores do
capitalismo videofinanceiro, antagonista que o inspirou em todos
os seus trabalhos. Acrescenta que,
se não fosse essa luta na selva das
cidades, ele não passaria de um
artista alienado numa caixa-preta. Mostra com a sua dedicatória
que superou a paixão do ódio.
Teria valido assistir à peça ainda
que fosse só para ver Ricardo Bittencourt nos diferentes papéis
que encarna: Juiz do Bom Conselho, evocando um morcego na
sua vestimenta negra e ocupando
com a sua presença o espaço todo
do teatro; Ricardo 3º, pois no papel de candidato ao papel de coronel Moreira Sales, Ricardo Bittencourt encarna o personagem de
Shakespeare. Em Ricardo 3º e em
coronel Moreira Sales, a transfiguração do ator é perfeita. Parece
ter nascido com os defeitos físicos
dos personagens. Quem viu não
pode esquecer.
Como não esquece Patrícia
Aguille, maravilhosa no papel de
Helena da Tróia de Taipa. Raptada por Pajeú, ela é a causa do incidente inicial da Luta. Sua beleza
de deusa nórdica -seios dourados, como faróis- foi devidamente exaltada pela dramaturgia.
No papel do oficial argentino que
violentou o coronel Moreira Sales, Patrícia exibe com pompa a
sua força andrógina, fascinando.
E brilha até o fim, entrando em
cena como um glorioso cavalo.
Faz tudo como o artista deve fazer: como se fosse a última vez.
Teria valido ver a peça ainda
que fosse só para ouvir Adriana
Caparelli no papel de Verônica.
Sua voz é tão cálida quanto é gélida a sua imagem de mulher envolta num véu negro. As mulheres em "A Luta" são particularmente impressionantes, sobretudo quando aparecem juntas enroladas num pano que também serve de xador para dar vida à muçulmana de muitas cabeças, figura onírica que nos reenvia ao
Oriente de todas as guerras e universaliza Canudos.
Com "A Luta", muitos atores
novos surgiram, anunciando um
elenco futuro que será uma multidão. Outros se confirmaram, como Danilo Tomic, que entra em
cena como general Cunha Matos.
Na terceira parte da epopéia, alcançamos a meca da grande arte,
que se materializa nas cenas mais
poéticas, porque na dramaturgia
de Zé Celso o que interessa não é a
co-municação, mas a cu-municação, ou seja, o verbo que o corpo
traga e vira música. Não é a significação que importa, mas o sentido; não é o conhecimento, mas o
cu-nhecimento, o saber que passa
pelo corpo. Na tradição da nossa
cultura popular, Zé Celso é um
budista brasileiro, e a sua peça
evoca um dos ensinamentos de
Buda, o de que o conhecimento se
toma emprestado dos outros, enquanto a sabedoria é interior, é sinônimo de experiência, e não de
informação.
Betty Milan, escritora e psicanalista, é
autora de "O Clarão" (Cultura) e "A Paixão de Lia" (Globo), entre outros livros
Os Sertões - A Luta: Primeira
Parte
Quando: sáb. e dom., às 18h
Onde: Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela
Vista, tel. 0/xx/11/ 3106-2818)
Quanto: R$ 30
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