São Paulo, sábado, 14 de maio de 2005

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COMENTÁRIO

Com "A Luta", Zé Celso ensina que a sabedoria é um dom interior

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Na terceira parte de "Os Sertões", Zé Celso faz no catálogo uma dedicatória surpreendente. Evocando 40 anos de tropicalismo e da "influência do poeta antropófago Oswald em todas as suas criações", dedica-lhe. Mas também a dedica a Silvio Santos, chamado de "empresário acima de tudo artista, animador, ator".
Zé Celso faz isso alegando que teve a sorte de contracenar nos últimos 20 anos com Silvio Santos, um dos mais poderosos atores do capitalismo videofinanceiro, antagonista que o inspirou em todos os seus trabalhos. Acrescenta que, se não fosse essa luta na selva das cidades, ele não passaria de um artista alienado numa caixa-preta. Mostra com a sua dedicatória que superou a paixão do ódio.
Teria valido assistir à peça ainda que fosse só para ver Ricardo Bittencourt nos diferentes papéis que encarna: Juiz do Bom Conselho, evocando um morcego na sua vestimenta negra e ocupando com a sua presença o espaço todo do teatro; Ricardo 3º, pois no papel de candidato ao papel de coronel Moreira Sales, Ricardo Bittencourt encarna o personagem de Shakespeare. Em Ricardo 3º e em coronel Moreira Sales, a transfiguração do ator é perfeita. Parece ter nascido com os defeitos físicos dos personagens. Quem viu não pode esquecer.
Como não esquece Patrícia Aguille, maravilhosa no papel de Helena da Tróia de Taipa. Raptada por Pajeú, ela é a causa do incidente inicial da Luta. Sua beleza de deusa nórdica -seios dourados, como faróis- foi devidamente exaltada pela dramaturgia. No papel do oficial argentino que violentou o coronel Moreira Sales, Patrícia exibe com pompa a sua força andrógina, fascinando. E brilha até o fim, entrando em cena como um glorioso cavalo. Faz tudo como o artista deve fazer: como se fosse a última vez.
Teria valido ver a peça ainda que fosse só para ouvir Adriana Caparelli no papel de Verônica. Sua voz é tão cálida quanto é gélida a sua imagem de mulher envolta num véu negro. As mulheres em "A Luta" são particularmente impressionantes, sobretudo quando aparecem juntas enroladas num pano que também serve de xador para dar vida à muçulmana de muitas cabeças, figura onírica que nos reenvia ao Oriente de todas as guerras e universaliza Canudos.
Com "A Luta", muitos atores novos surgiram, anunciando um elenco futuro que será uma multidão. Outros se confirmaram, como Danilo Tomic, que entra em cena como general Cunha Matos.
Na terceira parte da epopéia, alcançamos a meca da grande arte, que se materializa nas cenas mais poéticas, porque na dramaturgia de Zé Celso o que interessa não é a co-municação, mas a cu-municação, ou seja, o verbo que o corpo traga e vira música. Não é a significação que importa, mas o sentido; não é o conhecimento, mas o cu-nhecimento, o saber que passa pelo corpo. Na tradição da nossa cultura popular, Zé Celso é um budista brasileiro, e a sua peça evoca um dos ensinamentos de Buda, o de que o conhecimento se toma emprestado dos outros, enquanto a sabedoria é interior, é sinônimo de experiência, e não de informação.


Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de "O Clarão" (Cultura) e "A Paixão de Lia" (Globo), entre outros livros

Os Sertões - A Luta: Primeira Parte
Quando: sáb. e dom., às 18h
Onde: Oficina (r. Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. 0/xx/11/ 3106-2818)
Quanto: R$ 30


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