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Ética, bom senso e sobrevivência
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Qual a diferença entre um
anglo-saxão, um alemão prussiano e um latino? O grande
matemático e polímata húngaro, John von Neumann, criador da teoria dos jogos e do
primeiro computador digital,
responde: para o anglo-saxão,
tudo é permitido, exceto o que
for explicitamente proibido;
para o prussiano, tudo é proibido, exceto o que for explicitamente permitido; e para o
latino, tudo o que for explicitamente proibido é permitido.
Estereótipos à parte, a anedota de Neumann toca em
ponto nevrálgico do ordenamento ético de qualquer sociedade humana -a identificação e observação das normas
demarcando a fronteira entre
o proibido e o permitido.
A pergunta que sempre se coloca quando surge um conflito
entre as normas éticas de convivência, de um lado, e o
bem-estar e a sobrevivência de
outro, é: até que ponto a linha
demarcatória entre o lícito e o
ilícito do ponto de vista moral
deve ser rígida ou flexível, ou
seja, mais ou menos adaptável
e passível de alteração de acordo com circunstâncias particulares e consequências prováveis da ação?
Uma coisa é o que acontece
na prática, outra é o que deveria prevalecer em tese, à luz da
postura teórica adotada. O
choque entre absolutismo e relativismo moral é tão antigo
quanto a história da ética. As
posições extremas nesse debate
aparecem de forma clara na
reveladora polêmica que travaram, no final do século 18, o
ensaísta francês Benjamin
Constant e o filósofo alemão
Immanuel Kant.
Em sua ética, Kant defendia
a existência de um conjunto de
obrigações e deveres incondicionais, que deveriam ser acatados independentemente de
nossas inclinações e projetos
pessoais e que em nenhuma
circunstância poderiam ser relaxados ou violados. Entre os
imperativos categóricos kantianos figura o dever absoluto
de não mentir, isto é, a obrigação de respeitar sempre a norma da veracidade, "qualquer
que seja a desvantagem que
disso decorra para si próprio
ou para outra pessoa".
Frente a essa posição, Constant publicou um artigo contestando o caráter absoluto da
norma da veracidade e provocando Kant a se posicionar
com clareza diante da seguinte
situação hipotética. Suponha
que um assassino esteja ao encalço de seu amigo e pergunte
a você, sem dar margem a evasivas, se ele está ou não escondido em sua casa. O que seria
moralmente certo? Mentir para tentar salvá-lo ou dizer a
verdade e lavar as mãos?
Ao dizer a verdade, respondeu Kant, jamais se faz algo
condenável. Nada poderia escusar o mentir, mesmo que ele
só traga benefícios ao outro. O
dano moral da mentira, por
mais louvável que ela possa
parecer, é duplo: ela é "uma
ofensa contra a humanidade"
e ela "aniquila a dignidade" de
quem mente. "Ser honesto em
todas as declarações, portanto,
é um decreto sagrado e imperativo da razão que não é limitado por qualquer consideração de conveniência." Quem
diz a verdade se exime de toda
a culpa. Com amigos assim,
quem precisaria de inimigos?
Nada como um teste à queima-roupa para revelar o caráter oculto de uma doutrina. É
espantoso verificar até que
ponto a fé num sistema teórico
e abstrato de idéias pode seduzir um pensador bem-intencionado a defender posições absurdas e desumanas, para não
dizer monstruosas. Mais do
que entregar o amigo ao assassino, foi Kant quem se entregou na resposta. O autômato
kantiano do dever põe o prussiano de Neumann no chinelo:
mentir é proibido e não há circunstância concebível que torne uma mentira permissível.
Nenhuma regra moral deve
ser absoluta. O que vale para a
norma da veracidade aplica-se
até mesmo aos tabus e interdições mais sagrados da convivência humana.
Se um holocausto nuclear reduzir a espécie humana a apenas um casal de irmãos, quem
defenderia a tese de que a proibição do incesto deveria ser
respeitada a qualquer preço?
Quando os sobreviventes do
desastre aéreo de 1972 nos Andes comeram a carne dos passageiros mortos, quem, exceto
Nelson Rodrigues, poderia
condená-los pela prática do
canibalismo?
O problema, contudo, é que,
assim como o absolutismo moral tem sérias limitações, existe
também o risco de ir longe demais na direção oposta. Onde
passa um boi, passa a boiada.
A partir do momento em que
se admite que é moralmente
válido, por exemplo, mentir
em certas ocasiões, onde exatamente deve ficar a fronteira
entre o certo, o errado e o tolerável? E quem será o árbitro
capaz de determinar com isenção os abusos e exceções à regra?
O que vem sendo feito da noção de "furto famélico", invocada por bispos da CNBB e pelo ministro Sepúlveda Pertence
com o intuito de justificar moralmente os saques no Nordeste, ilustra bem o ponto.
O "direito da extrema necessidade", como propõe o filósofo
moral William Paley, um dos
precursores da tradição utilitarista britânica, sustenta "o
direito de usar ou destruir propriedade de outro, quando se
torna necessário fazê-lo para a
nossa autopreservação".
O respeito à propriedade é
uma norma de convivência civilizada. Transformar essa regra em tabu intocável e sacrossanto, independente de qualquer outra consideração, revelaria um absolutismo ético desumano e insustentável, digno
dos piores momentos da filosofia kantiana. O "direito da extrema necessidade" é o reconhecimento de que toda norma moral requer normas adjuntas, definindo o seu campo
de validade e as exceções a ela.
Tudo isso é apenas bom senso. O que é lamentável e triste
para a convivência brasileira,
entretanto, é assistir ao abuso
descabido que vem sendo feito
da noção de "furto famélico"
com o intuito de legitimar moralmente a prática do crime
organizado e a quebra da ordem constitucional. Como
acontece nessas ocasiões, é difícil saber até onde vai a ingenuidade e a ignorância e onde
começa o oportunismo e a
má-fé.
Tão nociva quanto a tirania
de normas absolutas -"faça-se justiça, embora pereça o
mundo"- é a anarquia autodestrutiva da total ausência de
normas. Se uma onda generalizada de saques e atentados à
ordem pública desorganizar de
vez o que resta da economia
nordestina, minando todo o
respeito aos direitos de propriedade existentes, o resultado será um agravamento sem
precedentes da fome e a perpetuação do flagelo.
Daí a falácia da fórmula
brechtiana, ingenuamente
materialista, "primeiro a comida, depois a ética". Sobreviver, é verdade, é condição para
tudo o mais. Sem o respeito ao
mínimo legal, porém, a sobrevivência da comunidade ficará
ainda mais comprometida.
Sem ética e bom senso, não há
ordem, paz ou esperança de
vencer a fome -há desagregação social, colapso do sistema
produtivo e "guerra de todos
contra todos".
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