São Paulo, quinta, 14 de maio de 1998

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Ética, bom senso e sobrevivência

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Qual a diferença entre um anglo-saxão, um alemão prussiano e um latino? O grande matemático e polímata húngaro, John von Neumann, criador da teoria dos jogos e do primeiro computador digital, responde: para o anglo-saxão, tudo é permitido, exceto o que for explicitamente proibido; para o prussiano, tudo é proibido, exceto o que for explicitamente permitido; e para o latino, tudo o que for explicitamente proibido é permitido.
Estereótipos à parte, a anedota de Neumann toca em ponto nevrálgico do ordenamento ético de qualquer sociedade humana -a identificação e observação das normas demarcando a fronteira entre o proibido e o permitido.
A pergunta que sempre se coloca quando surge um conflito entre as normas éticas de convivência, de um lado, e o bem-estar e a sobrevivência de outro, é: até que ponto a linha demarcatória entre o lícito e o ilícito do ponto de vista moral deve ser rígida ou flexível, ou seja, mais ou menos adaptável e passível de alteração de acordo com circunstâncias particulares e consequências prováveis da ação?
Uma coisa é o que acontece na prática, outra é o que deveria prevalecer em tese, à luz da postura teórica adotada. O choque entre absolutismo e relativismo moral é tão antigo quanto a história da ética. As posições extremas nesse debate aparecem de forma clara na reveladora polêmica que travaram, no final do século 18, o ensaísta francês Benjamin Constant e o filósofo alemão Immanuel Kant.
Em sua ética, Kant defendia a existência de um conjunto de obrigações e deveres incondicionais, que deveriam ser acatados independentemente de nossas inclinações e projetos pessoais e que em nenhuma circunstância poderiam ser relaxados ou violados. Entre os imperativos categóricos kantianos figura o dever absoluto de não mentir, isto é, a obrigação de respeitar sempre a norma da veracidade, "qualquer que seja a desvantagem que disso decorra para si próprio ou para outra pessoa".
Frente a essa posição, Constant publicou um artigo contestando o caráter absoluto da norma da veracidade e provocando Kant a se posicionar com clareza diante da seguinte situação hipotética. Suponha que um assassino esteja ao encalço de seu amigo e pergunte a você, sem dar margem a evasivas, se ele está ou não escondido em sua casa. O que seria moralmente certo? Mentir para tentar salvá-lo ou dizer a verdade e lavar as mãos?
Ao dizer a verdade, respondeu Kant, jamais se faz algo condenável. Nada poderia escusar o mentir, mesmo que ele só traga benefícios ao outro. O dano moral da mentira, por mais louvável que ela possa parecer, é duplo: ela é "uma ofensa contra a humanidade" e ela "aniquila a dignidade" de quem mente. "Ser honesto em todas as declarações, portanto, é um decreto sagrado e imperativo da razão que não é limitado por qualquer consideração de conveniência." Quem diz a verdade se exime de toda a culpa. Com amigos assim, quem precisaria de inimigos?
Nada como um teste à queima-roupa para revelar o caráter oculto de uma doutrina. É espantoso verificar até que ponto a fé num sistema teórico e abstrato de idéias pode seduzir um pensador bem-intencionado a defender posições absurdas e desumanas, para não dizer monstruosas. Mais do que entregar o amigo ao assassino, foi Kant quem se entregou na resposta. O autômato kantiano do dever põe o prussiano de Neumann no chinelo: mentir é proibido e não há circunstância concebível que torne uma mentira permissível.
Nenhuma regra moral deve ser absoluta. O que vale para a norma da veracidade aplica-se até mesmo aos tabus e interdições mais sagrados da convivência humana.
Se um holocausto nuclear reduzir a espécie humana a apenas um casal de irmãos, quem defenderia a tese de que a proibição do incesto deveria ser respeitada a qualquer preço? Quando os sobreviventes do desastre aéreo de 1972 nos Andes comeram a carne dos passageiros mortos, quem, exceto Nelson Rodrigues, poderia condená-los pela prática do canibalismo?
O problema, contudo, é que, assim como o absolutismo moral tem sérias limitações, existe também o risco de ir longe demais na direção oposta. Onde passa um boi, passa a boiada. A partir do momento em que se admite que é moralmente válido, por exemplo, mentir em certas ocasiões, onde exatamente deve ficar a fronteira entre o certo, o errado e o tolerável? E quem será o árbitro capaz de determinar com isenção os abusos e exceções à regra?
O que vem sendo feito da noção de "furto famélico", invocada por bispos da CNBB e pelo ministro Sepúlveda Pertence com o intuito de justificar moralmente os saques no Nordeste, ilustra bem o ponto.
O "direito da extrema necessidade", como propõe o filósofo moral William Paley, um dos precursores da tradição utilitarista britânica, sustenta "o direito de usar ou destruir propriedade de outro, quando se torna necessário fazê-lo para a nossa autopreservação".
O respeito à propriedade é uma norma de convivência civilizada. Transformar essa regra em tabu intocável e sacrossanto, independente de qualquer outra consideração, revelaria um absolutismo ético desumano e insustentável, digno dos piores momentos da filosofia kantiana. O "direito da extrema necessidade" é o reconhecimento de que toda norma moral requer normas adjuntas, definindo o seu campo de validade e as exceções a ela.
Tudo isso é apenas bom senso. O que é lamentável e triste para a convivência brasileira, entretanto, é assistir ao abuso descabido que vem sendo feito da noção de "furto famélico" com o intuito de legitimar moralmente a prática do crime organizado e a quebra da ordem constitucional. Como acontece nessas ocasiões, é difícil saber até onde vai a ingenuidade e a ignorância e onde começa o oportunismo e a má-fé.
Tão nociva quanto a tirania de normas absolutas -"faça-se justiça, embora pereça o mundo"- é a anarquia autodestrutiva da total ausência de normas. Se uma onda generalizada de saques e atentados à ordem pública desorganizar de vez o que resta da economia nordestina, minando todo o respeito aos direitos de propriedade existentes, o resultado será um agravamento sem precedentes da fome e a perpetuação do flagelo.
Daí a falácia da fórmula brechtiana, ingenuamente materialista, "primeiro a comida, depois a ética". Sobreviver, é verdade, é condição para tudo o mais. Sem o respeito ao mínimo legal, porém, a sobrevivência da comunidade ficará ainda mais comprometida. Sem ética e bom senso, não há ordem, paz ou esperança de vencer a fome -há desagregação social, colapso do sistema produtivo e "guerra de todos contra todos".



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