São Paulo, quinta, 14 de maio de 1998

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CRÍTICA

"Diplomacia' é belo epitáfio

do enviado ao Rio

Um fato explicável e outro inexplicável rondam a história de Batatinha. O explicável é que tenha gravado tão pouco -não era, na acepção completa do termo, um cantor. O inexplicável é que tão poucos artistas tenham gravado o criador de alguns dos sambas mais pungentes que já se fizeram.
"Diplomacia" revoluciona o explicável e mantém o inexplicável. Mantém porque os convidados que ali estão são os que de há muito o reverenciam -não há novas conquistas.
O elenco se desincumbe da tarefa brilhantemente -graças, basicamente, à simplicidade, essa qualidade inalienável de Batatinha. Ainda assim, Gilberto Gil consegue saltar à frente de todos, em interpretação rigorosa de "Imitação".
E "Diplomacia" revoluciona porque é um achado quanto à voz de Batatinha. Pela primeira vez nos poucos registros que deixou gravados, o cantor transfere integralmente à interpretação a dor que sempre imprimiu às composições.
A voz fraquinha, a prosaica caixinha de fósforo, as inflexões engraçadas, os chiados, talvez até o peso da doença tornam mortais as facadas de tristeza verbal proferidas pelo cantor -as mesmas que desde sempre encantaram Bethânia.
No curto prólogo "Depois Eu Volta", já começa cuspindo fogo: "É Carnaval, é hora de sambar/ peço licença ao sofrimento/ depois eu volto pra meu lugar". Sem respiro, emenda "Conselheiro".
Letrada por um Paulo César Pinheiro que parece ter recebido a entidade Batatinha, a faixa rende o momento mais emocionante do disco.
Pela poesia ou pela forma de interpretar, Batatinha deve ser entronizado à tradição carioca de Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola (que ele amava e homenageou em "Ministro do Samba", presente no CD), mas também à da marginália paulista de Geraldo Filme e à do canto primevo de Clementina de Jesus.
Como Filme azarou de nascer em São Paulo, Batatinha deu de ser baiano, e acabou nisso -marginalidade morna, conformada. A tradição existe, entretanto -estão no CD, cantando com ele a brejeira faixa "De Revólver Não", o contemporâneo Riachão e os seguidores Nelson Rufino, Edil Pacheco e Valmir Lima.
Também aí, "Diplomacia" vem ser desmistificador. "De Revólver Não" -história verídica de um sujeito que queria pescar com revólver- expõe a pouco lembrada face bem-humorada de Batatinha.
Tal também se dá em "Jajá da Gamboa" ("Mas a cabrocha é boa/ apesar de ser coroa/ mas o Jajá da Gamboa/ é o dono da situação) e, acima de tudo, na antológica "Bebé Diferente": "Muito bebé chora, chora pra comer/ muito bebé chora, chora pra valer/ eu como sou um bebé diferente/ quando choro, quero aguardente". Mas, acredite, a alegre marchinha é muito triste. Assim era Batatinha, e "Diplomacia" é belíssimo epitáfio. (PAS)

Disco: Diplomacia Artista: Batatinha Lançamento: EMI Quanto: R$ 18, em média


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