São Paulo, quarta-feira, 14 de junho de 2000


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MÚSICA ERUDITA
Filarmônica Tcheca rima tempestade, felicidade e dignidade

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um programa tão conhecido joga o peso da noite na interpretação. Foi um bom concerto: mas a Filarmônica Tcheca teria se beneficiado, anteontem no Alfa, tocando um programa menos fácil para a platéia difícil de São Paulo.
O ponto alto acabou sendo a abertura "A Bela Melusina" de Mendelssohn (1809-47). Não tanto pela interpretação -fluente, mas com pouca fagulha-, e sim pela música mesmo, injustamente pouco tocada em concertos.
Talvez só um deprimido transcendental, como o romancista Thomas Bernhard, chegue à medida da felicidade de Mendelssohn. Seu compositor predileto tem nessa abertura um retrato: dividido entre as levezas de uma vida solar e a melancolia como lembrança ou promessa.
Até hoje mais famoso como pianista do que como regente, Vladimir Ashkenazy dirige a orquestra com uma naturalidade incisiva e sem histrionismos. É um músico completo. Sua simpatia humana é evidente e ele rege como um artista entre colegas, aplaudindo a orquestra até entre movimentos.
Quem mais mereceu seus aplausos foi o solista finlandês Pekka Kuusisto, no "Concerto para Violino" de Mendelssohn. Aos 24 anos, Kuusisto não é mais um menino prodígio; mas continua tocando como um menino e como um prodígio. Sua facilidade técnica é quase uma afronta. O violino, nas suas mãos, se entrega a tudo sem resistência.
Kuusisto entra na música de corpo inteiro. Há uma dose de teatro nos olhos arregalados para o infinito e na boca aberta para as sutilezas. Mas é um teatro vivo, como um jeito de andar ou falar. E se a gente fecha os olhos, ele está mesmo tocando o infinito e há muito para nos deixar de boca aberta.
Depois do intervalo, foi a vez da orquestra. Não é fácil descobrir coisas novas numa sinfonia tão batida como a "Pastoral" de Beethoven (1770-1827). Música ao vivo é sempre nova; mas se espera algo mais de uma orquestra do que a demonstração de que pode tocar a sinfonia.
À luz dos últimos anos, talvez possa se falar de um "retorno a Beethoven", como Lacan falava de um retorno a Freud. Beethoven ressurge, para nós, como um mestre moderno. (Exemplo: o primeiro tema da "Pastoral" faz valer a ambiguidade de uma nota, que tanto pode soar como fecho de uma seção como início da seguinte, e essa ambiguidade, então, é explorada obsessivamente.)
A Filarmônica Tcheca voltou a Beethoven com dignidade, mas sem maior ambição. Não traiu a sinfonia (com exceção do trompista); mas também não pôs fogo na tempestade, nem fez chover no sol. Resumindo, em quatro perguntas: Foi um bom programa? Foi. Foi ótimo? Não. A orquestra estava bem? Estava. Maravilhosa? Não. De qualquer modo, palmas para Ashkenazy e a Filarmônica, penando para fazer música desse nível num país que já viveu dias melhores, na música e fora dela.


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