|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MÚSICA ERUDITA
Filarmônica Tcheca rima tempestade, felicidade e dignidade
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Um programa tão conhecido joga o peso da noite na
interpretação. Foi um bom concerto: mas a Filarmônica Tcheca
teria se beneficiado, anteontem
no Alfa, tocando um programa
menos fácil para a platéia difícil de
São Paulo.
O ponto alto acabou sendo a
abertura "A Bela Melusina" de
Mendelssohn (1809-47). Não tanto pela interpretação -fluente,
mas com pouca fagulha-, e sim
pela música mesmo, injustamente pouco tocada em concertos.
Talvez só um deprimido transcendental, como o romancista
Thomas Bernhard, chegue à medida da felicidade de Mendelssohn. Seu compositor predileto
tem nessa abertura um retrato: dividido entre as levezas de uma vida solar e a melancolia como lembrança ou promessa.
Até hoje mais famoso como pianista do que como regente, Vladimir Ashkenazy dirige a orquestra
com uma naturalidade incisiva e
sem histrionismos. É um músico
completo. Sua simpatia humana é
evidente e ele rege como um artista entre colegas, aplaudindo a orquestra até entre movimentos.
Quem mais mereceu seus
aplausos foi o solista finlandês
Pekka Kuusisto, no "Concerto para Violino" de Mendelssohn. Aos
24 anos, Kuusisto não é mais um
menino prodígio; mas continua
tocando como um menino e como um prodígio. Sua facilidade
técnica é quase uma afronta. O
violino, nas suas mãos, se entrega
a tudo sem resistência.
Kuusisto entra na música de
corpo inteiro. Há uma dose de
teatro nos olhos arregalados para
o infinito e na boca aberta para as
sutilezas. Mas é um teatro vivo,
como um jeito de andar ou falar. E
se a gente fecha os olhos, ele está
mesmo tocando o infinito e há
muito para nos deixar de boca
aberta.
Depois do intervalo, foi a vez da
orquestra. Não é fácil descobrir
coisas novas numa sinfonia tão
batida como a "Pastoral" de Beethoven (1770-1827). Música ao vivo é sempre nova; mas se espera
algo mais de uma orquestra do
que a demonstração de que pode
tocar a sinfonia.
À luz dos últimos anos, talvez
possa se falar de um "retorno a
Beethoven", como Lacan falava
de um retorno a Freud. Beethoven ressurge, para nós, como um
mestre moderno. (Exemplo: o
primeiro tema da "Pastoral" faz
valer a ambiguidade de uma nota,
que tanto pode soar como fecho
de uma seção como início da seguinte, e essa ambiguidade, então,
é explorada obsessivamente.)
A Filarmônica Tcheca voltou a
Beethoven com dignidade, mas
sem maior ambição. Não traiu a
sinfonia (com exceção do trompista); mas também não pôs fogo
na tempestade, nem fez chover no
sol. Resumindo, em quatro perguntas: Foi um bom programa?
Foi. Foi ótimo? Não. A orquestra
estava bem? Estava. Maravilhosa?
Não. De qualquer modo, palmas
para Ashkenazy e a Filarmônica,
penando para fazer música desse
nível num país que já viveu dias
melhores, na música e fora dela.
Avaliação:
Texto Anterior: Pena que você não vai ver Próximo Texto: Literatura: Livro revela tamanho de Adélia Prado Índice
|