São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 2002

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"O PACTO DOS LOBOS"

Longa é uma pilha de cenas com uma infinidade de assuntos

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

O s exibidores acreditam, mas não sem razão, que ninguém vai ao cinema durante a Copa do Mundo. Mesmo se neste 2002 a Copa seja um tanto diferente (o horário das partidas de um modo geral nos pega dormindo e não provoca o tipo de contágio que afasta o espectador do cinema em favor dos jogos pela TV), a crença se mantém intacta: em linhas gerais, os lançamentos raspam o tacho.
Assim é com "O Pacto dos Lobos", filme de Christophe Gans, cuja maior virtude é colocar em evidência o valor de "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", feito por Tim Burton há cerca de três anos, e do qual "O Pacto" é uma espécie de "remake" europeu.
Suas particularidades, porém, não deixam de ser significativas. Primeiro, o filme se reivindica baseado em fatos reais ocorridos na França, em 1764. Nessa ocasião, o sábio cavaleiro de Fronsac, naturalista do rei, visita Gévaudan, onde se registram ataques ferozes de algo chamado "A Besta".
A Besta deve morrer, concordam todos. Mas o que é ela? Fruto de feitiçaria? Não é Fronsac que vai entrar nessa. Estamos diante de um mistério e, homem atualizado, Fronsac convoca para ajudá-lo um bom selvagem, seu amigo, o índio iroquês Mani. O convocado Mani se comunica com espíritos e coisas assim.
O paralelismo com "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" prossegue ao longo do filme: a sociedade local aqui também é extremamente viciosa e, enquanto o sábio naturalista busca determinar a natureza da Besta, ela continua em ação.
Em ambos os filmes, o herói acredita na ciência ou na razão como antídoto à crendice. Em ambos, a bruxaria ou a suposta intervenção do sobrenatural serve a objetivos escusos e à perpetuação de uma situação de poder.
Outra particularidade de "O Pacto" é que a ação se passa em 1764 e tem no rei o centro das atenções, embora ele nunca apareça. Já o narrador da história está em 1793, mais ou menos, ou seja, em pleno terror.
Aliás, ele é o jovem e sábio Thomas d'Apcher, que ajuda o cavaleiro de Fronsac a combater as trevas de Gévaudan. Mais ou menos 30 anos depois, d'Apcher está para ser decapitado.
Ou seja: o assunto de "O Pacto dos Lobos" diz respeito ao fato de como a razão triunfa sobre a superstição para, num segundo momento, o excesso de razão (a Revolução) degenerar em irracionalidade suprema.
Nos dois casos, a razão parece ser um atributo a que o populacho não tem acesso. Em 1764, ele é objeto da crendice ou então cúmplice das trevas aristocráticas. Já na Revolução, ele é sujeito de um transbordamento que conduz à irracionalidade.
Em suma, a diferença mais sensível entre "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" e "O Pacto dos Lobos" (afora a diferença de talento entre Burton e Gans, que não é nem comentável) é que o primeiro é politicamente progressista, enquanto o segundo é bem mais ambíguo.
A um primeiro olhar "O Pacto dos Lobos" parece referendar a onda revisionista que vê mais problemas do que soluções na Revolução Francesa. Não é um problema intransponível: é perfeitamente possível articular conservadorismo com bom cinema.
Problema mesmo é atravessar as duas horas e meia de um filme que não parece saber distinguir, nunca, o essencial do acessório, de modo que ali se acumulam sexo, morte, mistério, "steady cam", beleza, feiúra, efeitos especiais, filosofia, culto à natureza, política, crença no sobrenatural e até mesmo amor, sem que tais elementos cheguem a formar um conjunto.
"O Pacto dos Lobos" é, em linhas gerais, uma pilha de cenas que abordam uma infinidade de assuntos e técnicas, não se detém em nenhuma delas e se arrasta tristemente, baseado apenas na unidade da intriga, até seu final.


O Pacto dos Lobos
Le Pacte des Loups  
Direção: Christophe Gans
Produção: França/Alemanha, 2001
Com: Samuel le Bihan, Vincent Cassel, Emilie Dequenne, Monica Bellucci
Quando: a partir de hoje nos cines Anália Franco, Cineclube DirecTV, Eldorado, Morumbi, Sala UOL e circuito



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