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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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ANÁLISE

Pérola negra

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

Por convicção, por opção e por destino, Itamar Assumpção construiu sua trajetória musical à margem e de costas para o mercado, numa espécie de semi-clandestinidade, compondo e cantando sempre para poucos.
No início do ano, no que deve ter sido um de seus últimos shows, estava só com seu violão no pequeno palco do Supremo Musical. Vestido todo de branco, diante de não mais do que 50 pessoas, iniciou o espetáculo maldizendo a doença que o atormentava e seu terror diante da morte.
Encontrou espaço para fazer ironia e auto-ironia com sua dor e, dali em diante, se transformou num gigante em cena, alternando momentos de raiva e lirismo, áspero e delicado, como só ele sabia.
Para quem acompanhou, ainda adolescente, o surgimento simultâneo de Beleléu e Clara Crocodilo, no ano de 1980, era nítida a sensação de que havia ali um grande acontecimento, mas muito difícil, até pelo impacto da novidade, refletir sobre seu alcance.
A procissão de horrores descartáveis da cultura brasileira nos últimos 20 anos e as sucessivas frustrações do país de lá para cá de certa maneira reafirmaram a força interna das obras de Itamar e Arrigo Barnabé. Suas apostas afinal estavam certas. A lira paulistana foi uma espécie de pós-tropicalismo lúcido e desenganado.
O encarte do disco de estréia de Itamar traz uma navalha sobre seu título de eleitor, objeto decorativo de uma cidadania inexistente no país de João Figueiredo. Em 98, no auge da febre privatista, Itamar lança seu último disco, "Preto Brás". Ironia fina de alguém sempre ligado na tomada.
Itamar reinventou a função dos vocais femininos e, bem antes da onda rapper, trocou a figura doce do malandro do morro, tão cara à MPB, pela do marginal. Cantou a cidade a partir da periferia e, já em 1980, dizia: "Baby, não se assuste/ hoje o tempo é de terror".


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