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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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"DESMUNDO"

Miranda expõe "pátria desimportante"

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O romance "Desmundo", de Ana Miranda, começa em 1555, quase 50 anos antes da data em que se inicia o enredo de outra obra sobre os fundamentos da nação brasileira, "O Guarani", de José de Alencar. Embora pertençam, grosso modo, ao gênero histórico, os dois textos denotam forte imaginação evocando, portanto, não apenas elementos da realidade retratada, mas principalmente a ideologia da época em que foram criados.
Miranda vem se especializando em radiografar a história nacional por meio de uma escrita ao mesmo tempo objetiva e lírica, baseada em foco narrativo bem determinado. Desta vez, a perspectiva é a da moça portuguesa Oribela, órfã criada em convento. Trazida pela Coroa, junto com outras donzelas, à "terra do Brasil", ela deve se casar com algum dos colonos solteiros.
A empreitada atenderia a um pedido de Manoel da Nóbrega, para quem, com a vinda das órfãs, "os homens de cá apartar-se-hão do peccado". Há assim uma intenção civilizadora na tarefa, que inclui o casamento arranjado e forçado, ou seja, exige a submissão da mulher ao gozo do macho. No corpo feminino está a chave para o processo de civilização.
Oribela se revolta contra essa sujeição. Ela prefere morrer a se casar com o noivo escolhido para si, Francisco de Albuquerque. De certo modo, o romance articula-se em torno das tentativas bem e malsucedidas da moça para barganhar a autonomia do próprio corpo estando o centro da história fincado no estupro que ela sofre durante uma tentativa de fuga. Oribela também resiste ao pedido de Francisco para "conquistar esta pátria". A jovem só pensa em voltar a Portugal. Afinal, para ela, o Brasil, lugar situado no "cabo do mundo", perto de onde a Terra acaba, semelha ao "inferno".
É o "canto onde anoitece o mundo", o oposto mesmo do mundo, o desmundo. Ao contrário de Francisco, que insinua que a fonte do pecado está no Velho Continente, Oribela supõe que "todos pecamos e pecamos ainda mais numa terra assim distante".
Um oceano separa "Desmundo" de "O Guarani", escrito quase 140 anos antes. Na visão de Alencar, o núcleo da família portuguesa é transportado intato para o Brasil. A jovem Ceci entrega-se de bom grado à pátria nascente, oferecendo-se ao nativo na composição da nova etnia.
Alencar sonhou um amplo painel nacional, edulcorado, mas confiante no futuro e nos escritores capazes de "nos recolonizarem pela alma e pelo coração". Passados os anos, o projeto romântico floriu e murchou. Grandes quadros formativos foram escritos e nossas mazelas expostas. Perdemos a inocência. A nossos autores, restou a "grande pátria desimportante" cantada por Cazuza. Vivemos, hoje, nos estertores dos sonhos passados.


Desmundo
  
Autor: Ana Miranda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 30 (216 págs.)


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