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"DESMUNDO"
Miranda expõe "pátria desimportante"
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O romance "Desmundo",
de Ana Miranda, começa em
1555, quase 50 anos antes da data
em que se inicia o enredo de outra
obra sobre os fundamentos da nação brasileira, "O Guarani", de José de Alencar. Embora pertençam, grosso modo, ao gênero histórico, os dois textos denotam
forte imaginação evocando, portanto, não apenas elementos da
realidade retratada, mas principalmente a ideologia da época em
que foram criados.
Miranda vem se especializando
em radiografar a história nacional
por meio de uma escrita ao mesmo tempo objetiva e lírica, baseada em foco narrativo bem determinado. Desta vez, a perspectiva é
a da moça portuguesa Oribela, órfã criada em convento. Trazida
pela Coroa, junto com outras
donzelas, à "terra do Brasil", ela
deve se casar com algum dos colonos solteiros.
A empreitada atenderia a um
pedido de Manoel da Nóbrega,
para quem, com a vinda das órfãs,
"os homens de cá apartar-se-hão
do peccado". Há assim uma intenção civilizadora na tarefa, que
inclui o casamento arranjado e
forçado, ou seja, exige a submissão da mulher ao gozo do macho.
No corpo feminino está a chave
para o processo de civilização.
Oribela se revolta contra essa
sujeição. Ela prefere morrer a se casar com o noivo escolhido para
si, Francisco de Albuquerque. De
certo modo, o romance articula-se em torno das tentativas bem e
malsucedidas da moça para barganhar a autonomia do próprio
corpo estando o centro da história
fincado no estupro que ela sofre
durante uma tentativa de fuga.
Oribela também resiste ao pedido
de Francisco para "conquistar esta pátria". A jovem só pensa em
voltar a Portugal. Afinal, para ela,
o Brasil, lugar situado no "cabo do
mundo", perto de onde a Terra
acaba, semelha ao "inferno".
É o "canto onde anoitece o
mundo", o oposto mesmo do
mundo, o desmundo. Ao contrário de Francisco, que insinua que
a fonte do pecado está no Velho
Continente, Oribela supõe que
"todos pecamos e pecamos ainda
mais numa terra assim distante".
Um oceano separa "Desmundo" de "O Guarani", escrito quase
140 anos antes. Na visão de Alencar, o núcleo da família portuguesa é transportado intato para o
Brasil. A jovem Ceci entrega-se de
bom grado à pátria nascente, oferecendo-se ao nativo na composição da nova etnia.
Alencar sonhou um amplo painel nacional, edulcorado, mas
confiante no futuro e nos escritores capazes de "nos recolonizarem pela alma e pelo coração".
Passados os anos, o projeto romântico floriu e murchou. Grandes quadros formativos foram escritos e nossas mazelas expostas.
Perdemos a inocência. A nossos
autores, restou a "grande pátria
desimportante" cantada por Cazuza. Vivemos, hoje, nos estertores dos sonhos passados.
Desmundo
Autor: Ana Miranda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 30 (216 págs.)
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