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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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"ET EU TU"

Obra cria metáforas líricas do corpo

HEITOR FERRAZ MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A primeira imagem de "Et Eu Tu", da artista plástica Marcia Xavier e do poeta Arnaldo Antunes, é a de um pé pronto para dar um passo, para entrar nas primeiras páginas do livro. Na seguinte, as asas de um avião resvalam no ar, com a inscrição "Não pise". O leitor logo se depara com uma poética entre a terra e o ar, passando por imagens pinçadas na lírica tradicional, abrindo caminho para comparações com coisas fabricadas e tendo como centro de referência o corpo.
É um livro que mostra todo o lirismo de que é capaz a antilírica contemporânea, criando um diálogo intenso de dois códigos artísticos: o poema e a imagem fotografada. Esse entrelaçamento pode até sugerir um jogo amoroso entre as duas linguagens, como se uma quisesse entrar na outra.
O corpo não é visto somente enquanto corpo de alguém, mas é revelado em suas estranhezas, em seus desfoques, de que muitas vezes não nos damos conta. Nesse sentido, o "et" do título poderia ser lido como referência a extraterrestres, mas também a tudo que é estranho, que revela o inusitado de nós mesmos.
O encontro poderia não dar certo, pois haveria o risco de uma linguagem tornar-se ornamento da outra, mas aqui houve uma conjugação de poéticas. Há muito tempo, Arnaldo vem buscando no corpo seu tema de reflexão como em "2 ou + corpos no mesmo espaço". Já Marcia, que expõe fotografias e objetos desde 1994, trabalha com a distorção das imagens, criando atmosferas novas.
O entrelaçamento de poesia e imagem pode ser exemplificado com vários poemas. Num deles, Arnaldo escreve: "Vejo/ de longe/ longe/ vejo/ o que desejo desde/ dentro/ e entro/ entro/ dentro/ do que vejo". A imagem ao lado é a de um dia comum de praia, com folhagens secas cobrindo a paisagem marinha. Esse movimento do olhar que penetra nas coisas é o mesmo que as palavras vão adquirindo, inclusive se aglutinando em sentenças ou se repartindo em fragmentos. As palavras seguem o jogo proposto pela imagem.
Num dos mais belos poemas do livro, Arnaldo escreve "a coisa em si/ não existe// tudo tende/ pende/ depende". O poema continua por mais duas páginas, terminando pelos versos "coisa em si/ inexiste// só existe/ o que se/ sente". Há neste texto um esclarecimento do registro poético dos autores. Mesmo com um trabalho calcado nas coisas, eles procuram filtrá-las pelos sentidos, e elas se abrem e se desdobram em novas e inesperadas imagens -com uma proposital abertura para metáforas líricas do corpo.


Et Eu Tu
    
Autores: Marcia Xavier e Arnaldo Antunes
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 79 (200 págs.)

Heitor Ferraz Mello é jornalista e autor de "Hoje como Ontem ao Meio-dia" (2002), entre outros.



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