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CRÍTICA
"Ensaio.Hamlet" vê a perfeição do erro
MARIO VITOR SANTOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MOSCOU
Dois espetáculos brasileiros
aclamados pelas platéias de Moscou imprimiram marcas diversas
à participação brasileira no Festival Internacional Tchecov, encerrado ontem.
O primeiro espetáculo é "Ensaio.Hamlet", da Companhia dos
Atores, do Rio de Janeiro, sob a
direção de Enrique Diaz. Trata-se
de uma obra destinada a dialogar
criativamente com a essência do
teatro e do próprio homem do
Ocidente. A ação de "Ensaio.Hamlet" se passa naquilo que
pode ser o ensaio, um ensaio diferente, essencial e definitivo para
aquela que foi transformada na
obra central da cultura, o "Hamlet", de William Shakespeare.
Só que esse ensaio, ou ensaios,
como deveriam ser todos, é para
valer. Ao contrário do que poderia parecer, é durante o ensaio que
os temas aparecem com um grau
superior de realidade. Nos melhores momentos desse ensaio, é como se a peça não falasse a respeito
do real, mas fosse o próprio real.
A suposição é de que no ensaio
ainda não existe a mentira do teatro. Texto original e atores estão
livres para interagir. O ator manuseia a história, questiona-a, procura trazê-la à vida, acha algo e inventa em si o personagem.
Enrique Diaz e sua trupe querem contornar o engodo da ficção
fabricada e acabada. Buscam o
instante em que as idéias ainda
são fragmentárias. Aí pode haver
uma verdade, pois o erro é também o acerto. Não há cenário. Há
cadeiras, uma ou outra mesa. Objetos de cena. Não há ilusão.
E "Hamlet", essa peça tão famosa e importante para a tradição do
teatro, traz em si uma estranha seqüência que se baseia em um ensaio teatral, comandado pelo próprio príncipe da Dinamarca que
dá nome ao espetáculo.
Todo o mundo é um palco, diz
Hamlet, procurando criticar e
apontar a extensão em que o ser
humano é feito de maneira ficcional, cada indivíduo construindo-se para atuar de certa maneira, de
acordo com certa persona, no palco que é a vida. A idéia da estreita
relação entre teatro e vida é explorada até as últimas conseqüências
em "Ensaio.Hamlet", com estonteante felicidade.
No ensaio, que é a peça, tudo é
possível. No primeiro ato ainda
paira uma certa dúvida. O tom
das falas ainda parece buscar o sucesso imediato, o riso fácil. Há um
caos que ainda faz concessão ao
superficial. No segundo ato, tudo
parece fazer sentido. O ritmo é desenfreado, os fragmentos se sobrepõem, o lirismo de uma revolução inscrita na tradição: a tomada do teatro pelos atores (e Shakespeare era um deles).
O elenco formado por Bel Garcia, César Augusto, Felipe Rocha,
Fernando Eiras, Marcelo Olinto e
Susana Ribeiro consegue levar a
cabo um raro trabalho de pleno
sucesso do chamado processo colaborativo, em que o texto cênico
é desenvolvido em grupo ao longo dos ensaios para o espetáculo.
Como pode prosperar uma peça em que todos são Hamlet,
Cláudio e Ofélia? Como pode ser
tão envolvente uma reflexão intertextual sofisticada, que ora parece catarse psicodramática e ora
simpósio filosófico? Enrique Diaz
e a Companhia dos Atores sabem
como, e os dez minutos de aplauso e quatro retornos ao palco para
agradecimentos atestam isso.
Em contraste com Hamlet e
sem deixar expostas as marcas de
sua feitura, merece menção a apoteose propiciada por Antônio Nóbrega, Suzane Almeida e família
no espetáculo "Lunário Perpétuo", exibido no teatro Mossovet.
À primeira vista, trata-se apenas
de um exercício de levantamento
etnográfico, da alegria primitiva,
de lendas arcaicas, momentos
adequados a mais uma demonstração do virtuosismo ilimitado
de Nóbrega em sua crescente presença internacional.
Mas não, o que o artista parece
almejar é bem mais, ou seja, levar
para a área de influência do lingüista russo Mikhail Bakhtin o
atestado da validade de sua teoria
de carnavalização da cultura: a
fertilidade existente em um paganismo de base cristã, perdido na
Europa, mas recriado com vigor
no Nordeste do Brasil. Nóbrega
ofereceu antropofagia às avessas e
os russos o devoraram formando
um bloco único de Carnaval.
O jornalista Mario Vitor Santos viaja a
Moscou a convite da organização do 6º Festival Internacional de Teatro Tchecov
e da Funarte
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