São Paulo, quinta-feira, 14 de julho de 2005

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CRÍTICA

"Ensaio.Hamlet" vê a perfeição do erro

MARIO VITOR SANTOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE MOSCOU

Dois espetáculos brasileiros aclamados pelas platéias de Moscou imprimiram marcas diversas à participação brasileira no Festival Internacional Tchecov, encerrado ontem.
O primeiro espetáculo é "Ensaio.Hamlet", da Companhia dos Atores, do Rio de Janeiro, sob a direção de Enrique Diaz. Trata-se de uma obra destinada a dialogar criativamente com a essência do teatro e do próprio homem do Ocidente. A ação de "Ensaio.Hamlet" se passa naquilo que pode ser o ensaio, um ensaio diferente, essencial e definitivo para aquela que foi transformada na obra central da cultura, o "Hamlet", de William Shakespeare.
Só que esse ensaio, ou ensaios, como deveriam ser todos, é para valer. Ao contrário do que poderia parecer, é durante o ensaio que os temas aparecem com um grau superior de realidade. Nos melhores momentos desse ensaio, é como se a peça não falasse a respeito do real, mas fosse o próprio real.
A suposição é de que no ensaio ainda não existe a mentira do teatro. Texto original e atores estão livres para interagir. O ator manuseia a história, questiona-a, procura trazê-la à vida, acha algo e inventa em si o personagem.
Enrique Diaz e sua trupe querem contornar o engodo da ficção fabricada e acabada. Buscam o instante em que as idéias ainda são fragmentárias. Aí pode haver uma verdade, pois o erro é também o acerto. Não há cenário. Há cadeiras, uma ou outra mesa. Objetos de cena. Não há ilusão.
E "Hamlet", essa peça tão famosa e importante para a tradição do teatro, traz em si uma estranha seqüência que se baseia em um ensaio teatral, comandado pelo próprio príncipe da Dinamarca que dá nome ao espetáculo.
Todo o mundo é um palco, diz Hamlet, procurando criticar e apontar a extensão em que o ser humano é feito de maneira ficcional, cada indivíduo construindo-se para atuar de certa maneira, de acordo com certa persona, no palco que é a vida. A idéia da estreita relação entre teatro e vida é explorada até as últimas conseqüências em "Ensaio.Hamlet", com estonteante felicidade.
No ensaio, que é a peça, tudo é possível. No primeiro ato ainda paira uma certa dúvida. O tom das falas ainda parece buscar o sucesso imediato, o riso fácil. Há um caos que ainda faz concessão ao superficial. No segundo ato, tudo parece fazer sentido. O ritmo é desenfreado, os fragmentos se sobrepõem, o lirismo de uma revolução inscrita na tradição: a tomada do teatro pelos atores (e Shakespeare era um deles).
O elenco formado por Bel Garcia, César Augusto, Felipe Rocha, Fernando Eiras, Marcelo Olinto e Susana Ribeiro consegue levar a cabo um raro trabalho de pleno sucesso do chamado processo colaborativo, em que o texto cênico é desenvolvido em grupo ao longo dos ensaios para o espetáculo.
Como pode prosperar uma peça em que todos são Hamlet, Cláudio e Ofélia? Como pode ser tão envolvente uma reflexão intertextual sofisticada, que ora parece catarse psicodramática e ora simpósio filosófico? Enrique Diaz e a Companhia dos Atores sabem como, e os dez minutos de aplauso e quatro retornos ao palco para agradecimentos atestam isso.
Em contraste com Hamlet e sem deixar expostas as marcas de sua feitura, merece menção a apoteose propiciada por Antônio Nóbrega, Suzane Almeida e família no espetáculo "Lunário Perpétuo", exibido no teatro Mossovet.
À primeira vista, trata-se apenas de um exercício de levantamento etnográfico, da alegria primitiva, de lendas arcaicas, momentos adequados a mais uma demonstração do virtuosismo ilimitado de Nóbrega em sua crescente presença internacional.
Mas não, o que o artista parece almejar é bem mais, ou seja, levar para a área de influência do lingüista russo Mikhail Bakhtin o atestado da validade de sua teoria de carnavalização da cultura: a fertilidade existente em um paganismo de base cristã, perdido na Europa, mas recriado com vigor no Nordeste do Brasil. Nóbrega ofereceu antropofagia às avessas e os russos o devoraram formando um bloco único de Carnaval.


O jornalista Mario Vitor Santos viaja a Moscou a convite da organização do 6º Festival Internacional de Teatro Tchecov e da Funarte

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