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MARCELO COELHO
"O Príncipe": entre o realismo e a publicidade
Festa grã-fina. O empresário tem uma técnica muito
específica de falar com a boca
cheia, concordando rapidamente
com o interlocutor enquanto dá
um jeito de engolir às pressas o
canapê que lhe serviram.
Casa de classe média em Pinheiros. A fotógrafa japonesa,
descolada e longilínea, antes de
sair correndo para um compromisso de trabalho, chama a atenção para a nova tatuagem que fez
no ombro. O carro dela é um Lada vermelho, muito bem conservado, na medida do seu falso desinteresse pelas coisas materiais.
Cenas desse tipo, que aparecem
em "O Príncipe", trazem a marca
dos filmes de Ugo Giorgetti: o ultra-realismo nos gestos insignificantes do cotidiano, uma espécie
de opulência irônica ao tratar da
superfície das coisas.
Há alguns caricaturistas, como
Aroeira ou talvez os irmãos Caruso, que conseguem isso no desenho: não acentuam apenas uma
ou duas características do retratado (o queixo enorme de um, os
dentes irregulares de outro), mas
distorcem todo o conjunto do rosto, procurando ao mesmo tempo
manter máxima fidelidade ao
modelo. Percebemos que é caricatura, mas parece uma fotografia.
A máscara é nítida, reluzente,
"em cores", como se fosse a própria realidade.
Falei da "superfície" das coisas;
talvez fosse melhor falar no "sintoma" das coisas. O real brilha como se tivesse febre nos filmes de
Ugo Giorgetti, que juntam de caso
pensado a técnica do teatro besteirol com a dos anúncios de TV.
Era bem esse o estilo e o tema de
"Sábado", que mostrava um desfile engraçadíssimo de tipos sociais durante a filmagem de um
comercial num prédio encortiçado do centro paulistano.
Mas "O Príncipe" não tem toda
essa graça. É melancólico no tom,
e Giorgetti, a meu ver, não se dá
tão bem.
As primeiras cenas do filme
mostram o personagem principal,
vivido por Eduardo Tornaghi,
voltando a São Paulo depois de
ter vivido 20 anos em Paris. O táxi
passa por uma rua infernalmente
movimentada, com polícia, brigas, pizza-delivery, congestionamento e mesas de ferro nas calçadas. "Isto aqui é mesmo a Mourato Coelho?", pergunta Tornaghi
ao taxista, estranhando a transformação.
O senso de irrealidade, a experiência de que tudo é inconvincente e postiço, marca o reencontro do personagem com todos os
seus velhos amigos e até com a
mãe, que, por sua vez, demora para reconhecê-lo.
O problema é que tudo parece
falso -não só ao personagem
mas também ao espectador. Fatos
e personagens parecem um tanto
fora de foco e aproximam-se bastante de alguns clichês do cinema
italiano. Éramos tão idealistas, e
o que foi que a vida fez da gente?
Um grupo de cínicos e oportunistas.
Aos gritos, segurando uma garrafa de Chivas, o jornalista bêbado vivido por Otávio Augusto invoca o fantasma de Paulo Vanzolini na madrugada paulistana,
enquanto lixo e mendigos se espalham pela calçada azul. Estamos
nas imediações do Paribar, antigo ponto de encontro da boêmia
de esquerda.
A cena é falsa. Mas é possível
que sua falsidade (na fotografia,
no discurso, na atitude dos personagens) pretenda ressaltar, por
contraste, um mundo real (de
mendigos, degradação urbana e
violência) que, este sim, é inacreditável e absurdo.
Inverossimilhanças de pormenor surgem, todavia, em outros
momentos. Um assalto, filmado
ao longe, parece especialmente
mal encenado, como se os atores
estivessem ensaiando ainda o que
deveriam fazer.
Fiquei pensando no que é que
aconteceu para que o filme desse
errado nesse ponto. Em "O Príncipe", Giorgetti filma clichês como
se fossem a mais pura realidade e
a realidade como se fosse um filme malfeito.
Mas talvez a explicação esteja
exatamente aí. Lidando com o
destino de sua própria geração
-em que muitas pessoas terminaram abandonando os ideais
críticos para aderir ao mundo da
publicidade e da picaretagem cultural-, Giorgetti parece ter feito
um filme que subverte "de dentro" esses remorsos e dilemas morais.
É que, paralelamente à história
um tanto insossa desse tão insosso
Eduardo Tornaghi, há outra coisa acontecendo dentro do filme.
"O Príncipe" encadeia cenas e cenas de total merchandising. Uma
conhecida academia de ginástica
de São Paulo, a Companhia Athletica, é apresentada num verdadeiro "tour" de reconhecimento. Mas é um merchandising "ao
contrário", em que empresas e
ambientes surgem num contexto
que os desglamouriza bastante.
O jogo entre publicidade e ética,
entre realidade glamourizada e
absurdo concreto e entre a iluminação artificial de estúdio e um
país à beira do apagão (o tema é
repetidas vezes mencionado pelos
personagens) parece entranhar-se, assim, na própria linguagem
do filme, que, ao mesmo tempo,
convence e não convence.
Minha impressão, todavia, é
que, nesse jogo implícito entre
realidade e mistificação, nesse esforço de subversão do merchandising e do realismo cinematográfico, o filme de Giorgetti acaba se
perdendo. Aquilo que "O Príncipe" tem de mais interessante fica
meio introvertido, a exemplo do
silencioso e passivo personagem
principal; e a imagem mais marcante do filme termina sendo
aquela, meio constrangedora e
gasta, do boêmio invocando o nome dos velhos amigos, na madrugada paulistana, um pouco satisfeito no próprio papel.
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