São Paulo, quarta-feira, 14 de agosto de 2002

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MARCELO COELHO

"O Príncipe": entre o realismo e a publicidade

Festa grã-fina. O empresário tem uma técnica muito específica de falar com a boca cheia, concordando rapidamente com o interlocutor enquanto dá um jeito de engolir às pressas o canapê que lhe serviram.
Casa de classe média em Pinheiros. A fotógrafa japonesa, descolada e longilínea, antes de sair correndo para um compromisso de trabalho, chama a atenção para a nova tatuagem que fez no ombro. O carro dela é um Lada vermelho, muito bem conservado, na medida do seu falso desinteresse pelas coisas materiais.
Cenas desse tipo, que aparecem em "O Príncipe", trazem a marca dos filmes de Ugo Giorgetti: o ultra-realismo nos gestos insignificantes do cotidiano, uma espécie de opulência irônica ao tratar da superfície das coisas.
Há alguns caricaturistas, como Aroeira ou talvez os irmãos Caruso, que conseguem isso no desenho: não acentuam apenas uma ou duas características do retratado (o queixo enorme de um, os dentes irregulares de outro), mas distorcem todo o conjunto do rosto, procurando ao mesmo tempo manter máxima fidelidade ao modelo. Percebemos que é caricatura, mas parece uma fotografia. A máscara é nítida, reluzente, "em cores", como se fosse a própria realidade.
Falei da "superfície" das coisas; talvez fosse melhor falar no "sintoma" das coisas. O real brilha como se tivesse febre nos filmes de Ugo Giorgetti, que juntam de caso pensado a técnica do teatro besteirol com a dos anúncios de TV. Era bem esse o estilo e o tema de "Sábado", que mostrava um desfile engraçadíssimo de tipos sociais durante a filmagem de um comercial num prédio encortiçado do centro paulistano.
Mas "O Príncipe" não tem toda essa graça. É melancólico no tom, e Giorgetti, a meu ver, não se dá tão bem.
As primeiras cenas do filme mostram o personagem principal, vivido por Eduardo Tornaghi, voltando a São Paulo depois de ter vivido 20 anos em Paris. O táxi passa por uma rua infernalmente movimentada, com polícia, brigas, pizza-delivery, congestionamento e mesas de ferro nas calçadas. "Isto aqui é mesmo a Mourato Coelho?", pergunta Tornaghi ao taxista, estranhando a transformação.
O senso de irrealidade, a experiência de que tudo é inconvincente e postiço, marca o reencontro do personagem com todos os seus velhos amigos e até com a mãe, que, por sua vez, demora para reconhecê-lo.
O problema é que tudo parece falso -não só ao personagem mas também ao espectador. Fatos e personagens parecem um tanto fora de foco e aproximam-se bastante de alguns clichês do cinema italiano. Éramos tão idealistas, e o que foi que a vida fez da gente? Um grupo de cínicos e oportunistas.
Aos gritos, segurando uma garrafa de Chivas, o jornalista bêbado vivido por Otávio Augusto invoca o fantasma de Paulo Vanzolini na madrugada paulistana, enquanto lixo e mendigos se espalham pela calçada azul. Estamos nas imediações do Paribar, antigo ponto de encontro da boêmia de esquerda.
A cena é falsa. Mas é possível que sua falsidade (na fotografia, no discurso, na atitude dos personagens) pretenda ressaltar, por contraste, um mundo real (de mendigos, degradação urbana e violência) que, este sim, é inacreditável e absurdo.
Inverossimilhanças de pormenor surgem, todavia, em outros momentos. Um assalto, filmado ao longe, parece especialmente mal encenado, como se os atores estivessem ensaiando ainda o que deveriam fazer.
Fiquei pensando no que é que aconteceu para que o filme desse errado nesse ponto. Em "O Príncipe", Giorgetti filma clichês como se fossem a mais pura realidade e a realidade como se fosse um filme malfeito.
Mas talvez a explicação esteja exatamente aí. Lidando com o destino de sua própria geração -em que muitas pessoas terminaram abandonando os ideais críticos para aderir ao mundo da publicidade e da picaretagem cultural-, Giorgetti parece ter feito um filme que subverte "de dentro" esses remorsos e dilemas morais.
É que, paralelamente à história um tanto insossa desse tão insosso Eduardo Tornaghi, há outra coisa acontecendo dentro do filme. "O Príncipe" encadeia cenas e cenas de total merchandising. Uma conhecida academia de ginástica de São Paulo, a Companhia Athletica, é apresentada num verdadeiro "tour" de reconhecimento. Mas é um merchandising "ao contrário", em que empresas e ambientes surgem num contexto que os desglamouriza bastante.
O jogo entre publicidade e ética, entre realidade glamourizada e absurdo concreto e entre a iluminação artificial de estúdio e um país à beira do apagão (o tema é repetidas vezes mencionado pelos personagens) parece entranhar-se, assim, na própria linguagem do filme, que, ao mesmo tempo, convence e não convence.
Minha impressão, todavia, é que, nesse jogo implícito entre realidade e mistificação, nesse esforço de subversão do merchandising e do realismo cinematográfico, o filme de Giorgetti acaba se perdendo. Aquilo que "O Príncipe" tem de mais interessante fica meio introvertido, a exemplo do silencioso e passivo personagem principal; e a imagem mais marcante do filme termina sendo aquela, meio constrangedora e gasta, do boêmio invocando o nome dos velhos amigos, na madrugada paulistana, um pouco satisfeito no próprio papel.



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