São Paulo, quarta-feira, 14 de agosto de 2002

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CINEMA

Visconti irresistível

Divulgação
Claudia Cardinale e Jean Sorel em cena de "Vagas Estrelas da Ursa", filme de 1965 de Visconti, que será exibido dia 20 na mostra



Mostra no Centro Cultural São Paulo apresenta filmes inéditos e cópias restauradas do cineasta italiano


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Dois anos após o famoso "Basta!" que proferiu ao morrer, em março de 1976, durante uma apresentação da Segunda Sinfonia de Brahms, a obra de Luchino Visconti começava a ganhar enfim a sua real dimensão com a mostra realizada sob os auspícios da filha de Suso Cecchi d'Amico, velha parceira e roteirista do cineasta -mostra que talvez não fosse tão completa e bem-cuidada quanto a que se inicia hoje, no Centro Cultural São Paulo, com inúmeras cópias restauradas.
Só então "Ossessione" (1942), o primoroso filme de estréia de Visconti, que levou o montador Mario Serandrei a cunhar o termo "neo-realista", tornava-se acessível. Realizada durante o regime fascista, mas censurada, mutilada e excomungada por toda a Itália, essa adaptação do romance de James Cain, "The Postman Always Rings Twice", cuja tradução francesa pirata Visconti ganhou de Jean Renoir, foi uma produção coletiva do grupo da revista "Cinema", a célebre publicação que, apesar de dirigida pelo filho de Mussolini, tornou-se antro de intelectuais de esquerda e comunistas clandestinos, e germe do cinema neo-realista do pós-guerra.
A direção de Visconti nesse projeto coletivo não foi apenas um álibi para enganar a censura fascista com a assinatura de um filho dileto da mais importante família de Milão, a "Visconti di Modrone", que por dois séculos reinou no norte da Itália. Fosse assim, "Ossessione" tenderia mais para o realismo socialista do que para o realismo fenomenológico do Renoir dos anos da Frente Popular, de quem Visconti foi o assistente (ao lado de Cartier-Bresson e Jacques Becker) em "Une Partie de Campagne". Com Renoir, Visconti aprendeu que cinema só se faz com "cúmplices" e que não se filma o homem dissociado do mundo, do ambiente que cria a presença viva das suas paixões.
Deflagrada a guerra, o grupo da "Cinema" começa a ser perseguido e preso pelos fascistas. Visconti entra para a Resistência, coloca a casa e a fortuna ao dispor dos companheiros de luta, tenta juntar-se a Rossellini nas montanhas apeninas, esconde-se na casa de Anna Magnani e acaba preso quando se preparava para realizar sua primeira "ação direta".
Na "Pensione Oltremare", prisão que foi tema de um de seus projetos abortados, Visconti maturou, pelo horror, o seu ideal político. Vítima de espancamento e testemunha de torturas, escapou da morte graças ao bom nome da família e aos favores sexuais que uma amiga, a atriz Maria Denis, prestou ao chefe da polícia política, Pietro Koch, cujo julgamento e execução Visconti filmaria, no pós-guerra, no documentário coletivo "Dias de Glória", uma das atrações inéditas da mostra do Centro Cultural. A Resistência fomentara o novo cinema italiano.
Enquanto Rossellini e De Sica consagram, no pós-guerra, o cinema neo-realista, Visconti dedica-se a renovar a cena teatral italiana, sua paixão primeira, só retornando ao cinema para dar ao neo-realismo, em 1948, o seu desfecho em "La Terra Trema". Nesse filme financiado pelo Partido Comunista e ligeiramente inspirado em um romance de Verga, Visconti tenta captar, em um grupo de pescadores sicilianos, o embrião de uma "consciência comunista", mas o que se evidencia, mais uma vez, a exemplo de "Ossessione", é o estetismo visionário do cineasta, essa visão algo sensual da unidade entre o homem e a natureza que levaria parte da crítica a apontar um certo "romantismo marxista" em Visconti.
O belo nunca deixaria de constituir uma espécie de "quarta dimensão" do cinema de Visconti. Esse dualismo constante entre o Visconti político (realista/pragmático) e o Visconti esteta (irrealista/romântico), dualismo que costuma ser esquematicamente associado à sua primeira formação (à tensão entre a herança ético-racionalista da mãe burguesa e o legado estético-decadentista do pai aristocrata) e que sempre lhe rendeu, apesar de obras-primas como "Um Rosto na Multidão", os maiores desgostos e incompreensões, tende a encontrar a conciliação, com o tempo, numa espécie de humanismo hedonista.


ESPLENDOR DE VISCONTI + NOVO CINEMA ITALIANO - mostra com filmes de Luchino Visconti. Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 0/xx/11/ 3277-3611, ramal 279). Quando: de hoje até dia 23. Entrada franca. Patrocinadores: Serasa, Agip do Brasil, Iveco, Comolatti.



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