São Paulo, sexta, 14 de agosto de 1998

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FESTIVAL DE GRAMADO
Cineasta vai contar a história do poeta em filme que começa a ser rodado em abril de 99, com a atriz Maria de Medeiros
Nelson Pereira busca juventude de Castro Alves

INÁCIO ARAUJO
JOSÉ GERALDO COUTO
enviados especiais a Gramado

Nelson Pereira dos Santos, que recebeu na última terça-feira em Gramado o troféu Oscarito por sua extraordinária carreira, não está disposto a se deixar imobilizar por rótulos como "monumento vivo" ou "patriarca do cinema brasileiro".
Aos 70 anos (que completará em outubro), o diretor de "Vidas Secas" está mais vivo do que nunca.
Em entrevista à Folha, ele falou com entusiasmo e bom humor de seus dois novos projetos: o longa-metragem "Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo", em co-produção com Portugal, e a adaptação para a TV do clássico sociológico "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre.
O filme sobre Castro Alves, que será ambientado na São Paulo de 1868, representa o reencontro do cineasta com sua cidade natal (nasceu no Brás) e com a escola onde estudou e iniciou sua militância comunista, a Faculdade de Direito do largo São Francisco.

Folha - Em que pé está a preparação de "Guerra e Liberdade - Castro Alves em São Paulo"?
Nelson Pereira dos Santos -
Estou captando recursos para completar o orçamento, que é de R$ 7 milhões. A idéia inicial era começar a filmar agora em outubro, mas a (atriz portuguesa) Maria de Medeiros, que vai fazer o papel de Eugênia Câmara, amante de Castro Alves, vai começar a fazer outro filme, então só poderei contar com ela no ano que vem. Minha idéia é filmar a partir de abril, depois que eu terminar a série "Casa Grande e Senzala".
Folha - E quem será Castro Alves?
Pereira dos Santos -
Os contemporâneos dele, como Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, o descreviam como um semideus. Outros dizem que era alto, bonito, com uma voz potente. Será um ator jovem, que será escolhido por concurso.
Folha - Você vai trabalhar a São Paulo de 1868. Como será possível a reconstituição de época?
Pereira dos Santos -
Ainda não está completamente definido, mas existe um espaço atrás da Vera Cruz onde é possível construir o cenário.
São Paulo naquela época era uma cidade bem simples. Mesmo o largo São Francisco tinha o chão de terra batida. De um lado havia o convento, a escola de direito, as igrejas, e do lado de cá eram casas modestas, térreas.
Folha - Qual a sua visão de Castro Alves?
Pereira dos Santos -
Era um menino, com um grande dom da poesia, um criador de imagens. As imagens dele são poderosas. Vou privilegiar a relação dele com Eugênia Câmara, que era uma mulher feita, intelectual, de 28 anos -ele tinha 19 na época. Ela foi muito maltratada pelos biógrafos do poeta, vista meio como prostituta que traiu o jovem etc. Mas não era isso, não. Ela se entregou de fato à relação.
Folha - O romance entre os dois será o centro do filme?
Pereira dos Santos -
Vou tratar também da relação de Castro Alves com o quadro político da época, especialmente o movimento abolicionista e republicano.
Um outro personagem importante é Dionísio Cerqueira. Dionísio foi voluntário para a Guerra do Paraguai e ficou na história por um livro que escreveu, "Reminiscências da Guerra do Paraguai". Então existem os dois personagens, o poeta e o militar, que representam duas faces do nascimento da República. Porque no fim a República foi criada pelos militares.
Folha - E nisso o Castro Alves representa a infância do país.
Pereira dos Santos -
Exatamente. A infância da República.
Folha - A reconstituição de São Paulo será realista ou alegórica?
Nelson Pereira -
Será mais alegórica. Quem me deu a idéia do cenário foi Álvares de Azevedo. Sabe que nós, paulistas, somos muito alemães no modo como concebemos nossa cidade.
O negócio da neblina, não é? É uma coisa da minha infância. O próprio Castro Alves tem um poema em que diz que São Paulo é um pedaço da Alemanha pregado aqui na América.
Folha - Como será a adaptação de "Casa Grande e Senzala"?
Pereira dos Santos -
É uma série de 13 episódios, para o canal GNT. O primeiro capítulo vai ao ar em setembro de 1999. Será realizada por quatro diretores, cada um com uma unidade de produção, com filmagens em Pernambuco, no Sul, em Portugal, na África. Eu faço a coordenação geral.
Folha - Vai ser só documental?
Pereira dos Santos -
Haverá uma mistura de gêneros, com reconstituição de cenas da vida cotidiana, na casa grande, na senzala, nas igrejas. Basicamente, é a vida na casa grande.
O conjunto será unido por um narrador, que é um leitor entusiasmado do livro e que vai contando o que leu ao espectador. Isso para evitar aquela narração impessoal que eu já vi tanto nos documentários de televisão.
Folha - Este ano, você está ganhando o troféu Oscarito. Você acha que pesa demais ser considerado um "monumento"?
Pereira dos Santos -
É gratificante ter essa homenagem, ainda mais estando trabalhando. Não é como o Oscar honorário, que eles dão pro cara que está lá, desempregado, fodido...
Folha - E como você se situa na história do cinema brasileiro?
Pereira dos Santos -
Eu evito qualquer definição nesse sentido, porque quero preservar a minha liberdade. Se você tem uma imagem, tem que fazer tudo em função dessa imagem.
Tem uma entrevista minha, muito cafajeste, nos anos 70, em que me perguntavam se eu era o pai do cinema novo. Eu respondi contando a história do filho que reclamava para o pai: "Por que você me pôs no mundo?"
Um dia, o pai desabafou. "Olha meu filho, o seguinte: eu só queria ter um momento de prazer com a sua mãe".
Eu também. Eu só queria fazer filmes. Se quiserem me chamar de pai, tudo bem. Mas não me responsabilizem.



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