São Paulo, Terça-feira, 14 de Setembro de 1999
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ARNALDO JABOR

Conversa em off com o "Mr. M" do Congresso

"Você é um idiota!", disse-me o deputado do terno brilhante. Seu cachaço suarento também brilhava. O cabelo de brilhantina reluzia, sublinhado pelo bigodinho anos 30, também pintado de negro. "Você é um idiota romântico...", repetiu o deputado, adoçando o insulto, que eu engolira por ver que ele, mamado de uísque, ia abrir-me o coração.
"Você acha que o Congresso devia ser a casa do interesse público? Ninguém sabe o que é isso lá dentro! Vou abrir minha alma! Vou contar tudo que se passa lá! Sou o "Mr. M" dos congressistas! Ah, ah, ah! Mas tudo em off, hein?!" -berrou-me Sua Excelência.
"Todos ficam esculhambando o FHC e esquecem que ele é um joguete em nossas mãos. Há quatro anos e meio o Executivo tenta passar as reformas e esbarra em nosso pântano, nessa barreira mole que somos nós. A imprensa esqueceu o Congresso, estou até meio carente! Ninguém critica mais o Congresso. Sabe por quê? Porque nós não temos rosto. É muito melhor pôr a culpa no Malan, em qualquer um com boca e nariz... Nós somos um agregado de vagos nomes e caras..."
"Você veja: o país melhorou na macroeconomia, mas falta aperfeiçoar as reformas. O FH tenta um gás novo para governar, mas nós vamos sentar em cima de tudo! Não vai passar nada no Congresso! Ah, ah! Sabe quem vai relatar a reforma da Previdência? A Jandira Feghali, do Partido Albanês! Ah, ah, ah... nem morta! Dane-se que a Previdência nos leve à bancarrota com R$ 40 bilhões de furo, não interessa que metade da arrecadação seja para pagar marajás, o importante é sabotar o "neoliberal canalha agente do FMI."
"A reforma administrativa andou para trás, não sobrou nada, com tanto substitutivo que virou pó-de-mico. Há tanto obstáculo para demitir funcionário que a "estabilidade" continua explodindo os orçamentos. E a Lei de Responsabilidade Fiscal? Ah... ah.... ah... o Joaquim Francisco, presidente da comissão, está com peninha dos canalhas que malversam o dinheiro público, e o relator Pedro Novaes também está colocando açúcar na lei. E, como político só tem medo de polícia e de tiro, a tal Lei de Responsabilidade Fiscal vai virar mãe-benta, quindim... E a reforma política? Pizza. Não virá nem fidelidade partidária, nem voto distrital, nada. Você acha que esta manada de picaretas vai diminuir suas brechas de irresponsabilidade? Jamais. E o PPA, o tal "Avança, Brasil"? Vai ficar parado enquanto os oportunistas disputam a relatoria! É a vaidade, o interesse partidário!!"
"E a reforma do Judiciário? Quem ousar morre queimado feito aquele pobre-diabo do Leopoldino... Quem vai mudar aqueles abutres? Ficam os babacas jornalistas falando em FMI, em proteção contra o "Consenso de Washington", e mal sabem que estão combatendo o inimigo errado. Que FMI, um "catso'!... O inimigo somos nós, os agentes da paralisia eterna do país, os defensores dos eternos privilégios, netos do mercantilismo escravista. Digo isso porque estou bêbado e porque tenho a perversão refinada de ser contraditório e meio brechtiano, criticando a mim mesmo, como um "Maître Puntilla", pois sou culto -não me subestime-, apesar de meu bigodinho lustroso e de minha gravata amarela com flores azuis... Somos nós os inimigos! As poucas reformas conseguidas foram à custa de conchavos tão escrotos que tudo foi virando esqueleto de peixe... Feito aquele marlin de "O Velho e o Mar", que acabou só espinhas na praia, comido de tubarões... Nós somos os tubarões!"
""O Congresso são grupos de interesse" -diz o vulgo. Somos mesmo! Desde os evangélicos, os ruralistas, a turma dos hospitais, a turma dos funcionários públicos, a turma da Albânia, a turma dos banqueiros... E o que nos une? O que une José Genoino e Ronaldo Caiado não é só interesse estratégico, não... É um prazer sádico de paralisar essa equipe de técnicos americanizados, bancando "moderninhos" pra cima de nosso populismo ignorante, pra cima de nossos chavões gastos, de nossas plataformazinhas feitas de velharias reducionistas e slogans que aprendemos em apostilas dos anos 50... Temos de defender nossa medíocre identidade contra esses reformadorezinhos de merda... Não queremos que nos reformem, pois eles nos desprezam, assim como esse presidente metido a Rui Barbosa... Aqui não passarão!... Aqui é a barreira dos ignorantes dionisíacos, dos eternos brasileirinhos do século 17!... Pensam o quê? Querem mudar nossos hábitos seculares assim, falando em "superávit primário", em "ajuste fiscal"... -que papo é esse? Já ganhamos quatro anos de lutas... E vamos manter tudo até o último dia, até a chegada de um populista de direita qualquer... Você se espanta com minha lucidez autocrítica? Pois eu sei que virá mesmo um fascistinha por aí, no estilo daquele leão-de-chácara de cabaré que fascina o Lula -o Hugo Chávez... Mas eu prefiro esse destino pendular "ditadura-democratismo" a uma democracia real criada por esses moderninhos que falam inglês."
"Quando vier a ditadura, posarei de mártir da democracia, feliz em meu curral. E tem mais, meu idiota romântico, o momento é agora! Se nós bobearmos, o Brasil pode mudar para "capitalista" e ficar menos patrimonialista. E nós? Como ficamos? Como velharias que foram reformadas, como ex-combatentes desnecessários? Nós somos o Brasil colonial, somos o Nordeste do melaço paralítico, somos os baianos oligárquicos, somos os fascistinhas paulistas, os escravistas cariocas, os ladrões da Zona Franca, os de-florestadores, os motosserras, os precatórios, os "chupacabras", somos os especuladores do "spread", somos os devedores do Banco do Brasil, os malandros da Sudene, somos os bons e atrasados brasileiros "imexíveis". Que FMI... Os inimigos somos nós! Ah, ah, ah!... A imprensa que arrasa o FH nos tolera com carinho por nossos sórdidos espasmos que chamam de "política". E tente nos esculhambar, idiota romântico; serás chamado de "entreguista", de "fujimorista", de agente do imperialismo, porque nós somos o Congresso democrático, meu chapa, nós somos os homens de bem."
"Nós somos o Brasil, meu caro -vocês são um detalhe. Agora, se publicar isso com meu nome, eu te mato, queimo o corpo e jogo na vala."


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